Territórios Sentidos: o encontro com o Rio Xingu e com um projeto de mortes
Por Marina Praça, educadora popular e coordenadora do Instituto Pacs
*Relato dos sentires em um território percorrido em novembro de 2019 — texto escrito há seis meses atrás, possível que alguns eventos sejam demarcados em um tempo passado, mas o projeto de morte e o vivido nos corpos territórios segue vivos, apesar das poucas condições para tal. Para informações mais atualizadas, acesse a reportagem do Movimento Xingu Vivo para Sempre, parceiro do Instituto Pacs e que me recebeu no recorrido em 2019: O Xingu colapsou e a sobrevida do povo está se inviabilizando.
Impossível não voltar de Altamira sem lágrimas duras, submersas em raiva, dor, angústia. Impossível voltar das margens do Rio Xingu, da região da Volta Grande do Xingu, sem o coração apertado, sem ter perdido um pouco da vida que corre por dentro. Que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte do consórcio Norte Energia S.A era um dos maiores erros da história, a expressão dura e crua da crueldade e ganância humana, eu já tinha entendido. Mas não sabia, antes de vir aqui, que essa é uma das expressões mais evidentes do que é um Projeto de Morte, um gigante projeto de diversas mortes, festejado por muitos desta desumanidade que vivemos.
Vivemos aqui a Morte do Rio Xingu, a morte de milhares de espécies de PEIXES, a morte da floresta no entorno, a morte da forma de vida de ribeirinhos, pescadores, indígenas, e a morte das pessoas que viviam e vivem nessa casa-corpo-território.
Parece que nada importa: estudos, pesquisas, certezas de que é e sempre foi um ERRO. A tal da ciência, tão inquestionável, no caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte foi deixada de lado. Indo para o argumento mais raso. Desde o início sabia-se que a capacidade produtiva da Usina era pequena para o tamanho do investimento, desde antes sabia-se que os períodos de seca do Rio Xingu tornavam o empreendimento um perigo, os estudos já apontavam que dificilmente o Rio sobreviveria a essa barragem.
Quase não há mais peixe. O pouco que tem está magro e deformado. Os pescadores e as pescadoras não tem mais como produzir e reproduzir suas vidas. Cria-se todos os tipos de formas de conseguir algo para seguir vivendo. Mas já tem famílias passando fome. Perderam suas formas de vida — por completo. O Rio se tornou turvo, sem vida, não se pode mais consumir a água e, em pouco tempo, nem mais poderão nele se banhar.
Este não é um projeto produtor de mortes?
Em 2019, mais de 10 anos depois do início do projeto, a Norte Energia, em decreto oficial, vem pedir apoio do Estado — o mesmo que permitiu que esse CRIME ocorresse e apoiou desde o início o ecocídio que geraria um genocídio — ao anunciar à Agência Nacional das Aguas(ANA) que há possibilidade do rompimento da Barragem de Pimental. Agora, não sabem o que fazer. O crime foi anunciado. Não há nenhum plano.
Na Vila do Bambu — comunidade as margens da Volta Grande do Xingu — a primeira que será destruída, caso ocorra o rompimento, já existem placas de evacuação, sirenes, pontos de encontro e etc. A comunidade que vive nesse momento o pavor constante, o medo e o desespero, se indigna e de raiva falam: “querem que nos encontremos para morrer juntos?”.
Quem acredita ainda que há soluções dentro desse sistema, desse modelo de desenvolvimento capitalista, racista e patriarcal, deveria vir até Altamira, na comunidade de Belo Monte, na Vila de Canari, no Bambu, na Volta Grande do Xingu.
Invista na construção de um olhar verdadeiramente humano. Venha conversar com Dona Fátima, Sarah, Dona Ana, Ana Alaíde, Dona Antônia e tantas outras pessoas. Venha sentir a transformação do clima vivido nessa área, sentir na pele o tal do aquecimento global. Venha à margem de um Rio gigante, lindo (ainda) e não tenha a possibilidade de comer um peixe. Se veja comendo frango industrial cheio de hormônios a margem de um dos maiores rios da humanidade.
Sente na beira do Rio Xingu e se permita escutá-lo. O que ele tem para lhe contar. Se silencie e escute. Se permita escutar os gritos de socorro do Xingu.
Passei quatro dias por aqui, parece pouco, mas foi vida. Em Altamira, Belo Monte e Vila Canari. Compartilhando histórias, olhares, sentimentos e indignação com mulheres, principalmente, sobre o direito à vida em meio a megaprojetos de mortes. Nesse grande encontro de pouco tempo relógio, mas muito tempo-existência, estiveram presentes em trocas, os Mundurukus, Gamelas, Borari e outras comunidades ribeirinhas, garimpeiros artesanais, agricultores, quilombolas do Xingu, do Tapajós e outros cantos de vida. Homens e mulheres em luta permanente contra a colonização dos corpos e mentes.
Aqui se aprende com o corpo. Os olhos, a escuta, o sentir, ao se espelhar como o Xingu e se ver no outro, o se entramar sendo vários em um só.
Nas margens do Xingu compartilhamos a Oficina Secas e Mulheres Rios sentindo o calor atípico comentado por todas, o megaprojeto de morte também alterou o clima local. Na Vila Canari éramos mais de 40 mulheres, que juntas cozinhavam, conversavam, pintaram, contaram história, e compartilharam vida em meio à morte. Todas falavam da falta de condições de manter suas famílias. Contavam da ruptura de seus modos de subsistência e das possibilidades de sorrir banhando no Rio e sentindo o ar fresco que quase não circula mais. O que percorria a cabeça era: como essas mulheres tem forças para seguir? Como elas, as que garantem a vida de suas famílias, conseguem fazer isso sem rio, sem peixe, sem sorrisos?
No seguinte as escutas seguiram, conversas e o sentir nas Margens do Xingu em Altamira, escutando os ensinamentos negros, indígenas e dos povos da floresta e do rio, vivos e encantados. Ao ver surgimento dos núcleos xinguenses para construir um comitê popular da bacia hidrográfica do Xingu[1]. No último, um grande encontro, “Amazônia — Centro do mundo” daqueles que sentimos um pouco menos, pois nos misturamos tanto, que fica difícil decifrar as coisas, mas bom para escutar os grandes, ver os entramados políticos existentes, ver os inimigos presentes e aflitos com a potência dos encontros (sim, haviam infiltrados querendo combater nossas forças e gerar o conflito).
Assim, é para seguir, de mãos dadas com tantos e distante de tantos outros. Tem militante que se alimenta de conflito, da ação direta, do enfrentamento. Eu faço uma saudação, das mais verdadeiras, a eles. Precisamos de gente guerreira, disposta a guerra. Eu não sou dessas, talvez tenha tentado ser em algum momento. Acreditando que poderia, queria, achando que era mais digna ser assim. Eu quero distância dos que me fazem mal. Dos que destroem vidas e que matam a mim e tantas irmãs e irmãos por dentro. Nos mais profundo.
Tenho medos, angústias e me sinto fraca. Como não desistir da luta? Como respirar em meio a tanta destruição? Como sobreviver num mundo que as mortes se multiplicam, e tantos dão suporte a isso? Como sobreviver as mortes das formas de reprodução da humanidade?
Mas aí também está nossa ruptura. No viver diferente, nas brechas, no produzir vida em paralelo à destruição. No não aceitar certos disciplinamentos e maneiras impostas aos nossos corpos e dinâmicas sociais. Construir um corpo livre e sadio.
[1] Para saber mais dos núcleos e o que eles vem realizando: https://xinguvivo.org.br/2019/11/21/comunidades-do-medio-xingu-se-mobilizam-contra-impactos-em-seus-territorios/