Ternium/CSA: mais de uma década de violações sem resposta

Instituto Pacs
11 min readFeb 21, 2020

É o Judiciário um lugar de justiça?

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)

Foto: Instituto Pacs

A população de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, sofre em todos os seus dias violações de direitos humanos e os impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais que vêm da cadeia produtiva industrial. Com a presença de grandes complexos de matriz energética e processos altamente poluidores, como a falida Ingá Mercantil e, desde 2010 até os dias de hoje, a siderúrgica Ternium Brasil, antiga TKCSA[1], o bairro tem cerca de 217.333 pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2010. Para além de uma investida constante de sacrifício do território, Santa Cruz transborda vida e resistência.

Em 2017, o grupo alemão ThyssenKrupp anunciou a venda da siderúrgica para a Ternium, companhia subsidiária da Techint, um conglomerado ítalo-argentino fundado em 1945, com presença em diversos setores da indústria. Após a compra da Companhia Siderúrgica do Atlântico, o grupo ampliou sua produção na América Latina de 12 para 17 milhões de toneladas de aço por ano e atualmente detém 17 centros de produção distribuídos em 6 países: Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, México e Brasil.

Com uma atuação que provoca continuamente a violação de direitos humanos e danos socioambientais aos territórios em que se localizam suas plantas industriais, a aquisição da siderúrgica pelo grupo Ternium não veio acompanhada de soluções definitivas para as denúncias de piora na saúde, alagamento das casas, índices altíssimos de poluição atmosférica, interrupção da pesca, uso de vultosas isenções públicas, dentre outras, que perpassam a trajetória de 14 anos da empresa na região.

O processo judicial

Contra a Ternium, é possível identificar demandas judiciais que envolvem desde procedimentos criminais, ações civis públicas, trabalhistas e de reparação civil individuais. No caso destas últimas, destaca-se a existência de 238 ações ajuizadas por famílias moradoras do bairro de Santa Cruz, entre 2011 e 2012, cujo objeto encontra-se centrado em três elementos: poluição atmosférica, impactos estruturais causados por linha férrea e alagamentos ocorridos na época da instalação. Após um longo percurso judicial, que culminou com a anulação da primeira perícia realizada para o caso, o juiz competente suspendeu todas as demandas individuais, concentrando-as em apenas uma ação — denominada paradigma –, cujo resultado será aproveitado para as demais. No âmbito dessa dinâmica, depois de inúmeras tentativas por parte do juiz e das partes envolvidas, foi selecionado, em março de 2018, um novo perito judicial para avaliar tecnicamente os três elementos anteriormente mencionados.

Em “Notas sobre um laudo pericial anunciado”, texto produzido pelo Pacs sobre o embate judicial[2] envolvendo moradores do bairro de Santa Cruz e a siderúrgica Ternium Brasil[3], foi apresentada a denúncia, em janeiro de 2019, a respeito da forma como a perícia vinha sendo conduzida[4]. Isto é, apesar de o juiz ter atendido o pedido da Defensoria, formulado em setembro de 2018, a partir de manifestações dos próprios moradores, para que pudessem acompanhar as visitas às casas relacionadas a produção do laudo pericial, não foi isso que ocorreu. A primeira e única atividade previamente agendada no local se deu fora do horário combinado, apenas com a participação de funcionários da siderúrgica e alguns moradores, que tiveram suas casas inspecionadas, sem uma confirmação de que os envolvidos realmente eram da equipe de peritos.

Há ainda relatos de moradores de que vistorias, inclusive em suas casas, foram feitas sem que a Defensoria e seu respectivo assistente técnico, prof. Adacto Otoni (UERJ), fossem previamente comunicados para que pudessem acompanhar as atividades. Importante ressaltar que uma dessas vistorias ocorreu após o pedido emergencial dos próprios moradores, cuja motivação foi o desabamento de parte da estrutura do teto da residência de uma moradora, em dezembro de 2018. Mesmo quando se olha o processo judicial, não há qualquer informação sobre as datas de realização da perícia, ou seja, a realização do laudo foi marcada pela ausência de comunicação e respeito aos acordos previamente estabelecidos.

Nesse contexto, em que assistente técnico e moradores foram ignorados pelos peritos, a Defensoria Pública, em fevereiro de 2019, solicitou ao juiz que:

1- O perito esclarecesse se já havia sido conduzida inspeção no local e, caso positivo,

2- Tais trabalhos fossem refeitos, mas, desta vez, acompanhados dos representantes dos moradores e assistentes técnicos,

3- Novas atividades fossem previamente informadas, com antecedência mínima de 5 dias, sob pena destas serem consideradas nulas,

4- Fosse concedido prazo de 60 dias para entrega dos pareceres técnicos após apresentação do laudo pelos peritos,

5- Fosse enviado ofício ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA), solicitando informações sobre nomes e respectivos registros profissionais dos técnicos responsáveis pela expedição das licenças concedidas à siderúrgica, e

6- Fosse expedido ofício ao Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), com a finalidade de atestar se os referidos técnicos do INEA possuíam habilitação para emitir parecer e/ou fundamentar decisão sobre o licenciamento ambiental da Ternium Brasil.

Apesar da presença dos advogados não ser obrigatória pela lei, o acompanhamento da perícia pelos assistentes técnicos é direito garantido pelo Código de Processo Civil. Ou seja, a participação de representantes das partes foi autorizada por decisão judicial, mas a dos assistentes técnicos está prevista na legislação e, em princípio, não pode ser— e tampouco foi — afastada. A petição apresentada pela Defensoria em fevereiro de 2019 formaliza a irregularidade acima mencionada. Em casos similares, conforme destacado pelo próprio defensor público, os Tribunais têm entendido que a não comunicação da data e local da perícia aos assistentes técnicos antes da sua realização torna qualquer prova produzida nula, isto é, invalida.

Interessante observar que, mesmo se tratando de um direito tanto dos moradores quanto da Ternium, apenas a Defensoria apresentou reclamações sobre o assunto. É preciso lembrar que, no dia do primeiro trabalho de campo — realizado fora do horário combinado, o que resultou na impossibilidade de participação do assistente técnico da Defensoria –, há relatos de que a equipe pericial esteve presente na região conduzindo inspeções e encontrava-se acompanhada de pessoas ligadas à siderúrgica. Considerando que os assistentes técnicos da Ternium não abririam mão de acompanhar os trabalhos periciais, é possível imaginar que os representantes da siderúrgica estiveram presentes nas demais atividades, ou mantiveram algum mínimo de comunicação, o que certamente não ocorreu com os moradores e assistente técnico da Defensoria. São reflexões que surgem como consequências de um processo sem a devida transparência.

Ocorre que, até o presente momento, não há manifestação do juiz sobre requerimento da Defensoria. Mesmo confiando que o magistrado tenha optado por responder apenas após finalização da perícia — o que parece contraditório e problemático, já que tais pedidos, se aceitos, podem resultar na anulação do laudo –, a continuidade de seu silêncio deve ser questionada pela Defensoria tão logo seja possível. Isso porque, caso realmente a situação fique indefinida, ou receba uma resposta negativa, será possível discutir a questão apenas após a sentença, quando a ação for para a segunda instância, tornando mais difícil sua reversão.

É preciso ressaltar que o pedido de anulação do laudo pela Defensoria não se trata de mero inconformismo com o resultado das análises técnicas. Ao se observar o processo judicial é possível verificar que, entre o requerimento da Defensoria e a apresentação do laudo, em junho de 2019, a ação ficou paralisada. Entretanto, ao ler o material produzido pelos peritos fica evidente que visitas técnicas foram realizadas, confirmando o relato dos moradores e, ainda, conferindo embasamento ao pedido formulado pela Defensoria. Ou seja, de que o assistente técnico não foi informado das inspeções, devendo tais atividades serem refeitas.

Analisando o laudo é possível identificar pelo menos 3 datas em que foram conduzidas vistorias. A primeira, em 03.09.2018, foi realizada antes mesmo da apresentação pelo perito do cronograma dos trabalhos e da metodologia que ele e sua equipe empregariam para realização dos estudos. Lembre-se que, até a data da vistoria em questão, a Defensoria não havia indicado seu assistente técnico (isso só ocorreu em 12.09.2018, após manifestação do juiz requerendo que os assistentes técnicos fossem nomeados). Logo, a perícia foi iniciada antes do cumprimento dos requisitos formais estabelecidos na legislação em vigor. A segunda, já mencionada, em dezembro de 2018, e a terceira, em janeiro de 2019, que incluiu algumas casas de moradores, mas cuja metodologia de escolha não é possível ser identificada.

Dados já considerados inconsistentes, valem?

Ainda sobre o laudo e, mesmo considerando a necessidade de se conduzir um estudo aprofundado, uma avaliação preliminar do material sugere que grande parte de sua análise se encontra fundamentada em dados secundários. Isto é, material produzido e utilizado pela siderúrgica à época e a partir das demandas geradas pelo processo de licenciamento — de outras disputas judiciais. Chama atenção para o fato de que o perito trouxe novamente para os autos um laudo antigo cuja validade já havia sido anulada pelo Judiciário, justificando a realização da presente perícia. Lembre-se, o documento não foi invalidado por conta do descumprimento de um requisito formal, mas como a própria decisão judicial sustenta:

“(…) sua utilização não pode ser aceita quando desrespeitada a garantia do contraditório, como ocorreu no caso em apreço em que, apesar da expressa determinação do magistrado, a Defensoria Pública não foi intimada para participar da prova. Indelével mácula na prova pericial produzida sem a apresentação de quesitos, sem o auxílio de assistente técnico e sem posterior impugnação ao laudo. Nulidade que sequer pode ser sanada através da apresentação de quesitos posteriores à própria elaboração do laudo, por ser da essência dos quesitos que sua apresentação seja anterior ou, em caso de quesitos complementares, concomitante à diligência, ex vi do artigo 425 do Código de Processo Civil. Impossibilidade de se aceitar que prova produzida sem o crivo do contraditório seja imposta como prova emprestada em outro feito. Reforma do decisum a fim de que seja deferida a produção de prova pericial a ser realizada por comissão composta por 3 (três) peritos de confiança do juiz.[5]

Ainda que a decisão acima mencionada pertença apenas a um dos mais de 200 processos, posteriormente agrupados na ação paradigma, o destaque acima serve para exemplificar os argumentos judiciais utilizados para invalidar o primeiro laudo elaborado no universo dos processos em questão — e, novamente, submeter a questão à análise pericial. Dessa forma, os atuais peritos reaproveitam um material que já havia sido anulado. Note, um especialista foi contratado para realizar uma análise, sendo que parte do seu estudo se encontra fundamentado por outra avaliação que já havia sido tornada nula pelo Poder Judiciário. Tal comportamento é tão absurdo que pode ser interpretado como uma estratégia para fazer valer, forçosamente, uma prova já tornada inválida. Esse movimento poderia ser imaginado, caso realizado pelos assistentes técnicos da siderúrgica, mas não pelo corpo pericial, que deveria zelar por sua imparcialidade.

E os(as) moradores(as), o que estão pensando disso?

Ao longo desse processo, nós do Instituto Pacs nos reunimos regularmente com moradoras/es de Santa Cruz para nos atualizarmos sobre a situação no território e repassar as informações sobre as ações[6], uma vez que a linguagem jurídica é construída, na maior parte, por termos que demandam estudo específico para comunicação mais ampla. Em reunião no mês de outubro de 2019, elencamos as contribuições das/os moradoras/es e parceiros presentes para o parecer da defensoria sobre o laudo pericial e encaminhamos à defensoria em novembro de 2019. Outro fato relevante é que havia uma van de monitoramento sentinela da qualidade do ar, localizada próxima ao posto de saúde e creche. Quando questionou-se a existência dela, a van já não estava no local. Seguimos sem informações sobre a função e os dados coletados no tempo em que o veículo esteve ali. Moradores que foram em busca dessas informações no local foram tratados com algum nível de impaciência. A ausência de transparência vai além do monitoramento e atinge os laudos médicos produzidos, que ora indicam determinados resultados negativos, ora indicam a normalidade, colocando sob dúvida inclusive o serviço prestado à população local e raramente (apenas um caso conhecido por nós) associando as doenças à enorme carga de poluentes emitida pela empresa.

Em reunião no mês de novembro de 2019, as/os moradoras/es, ainda indignadas/os com as alegações da perícia de que a empresa não é responsável pelos impactos vividos cotidianamente por elas/es, contaram mais sobre alguns impactos, não tão óbvios pra quem não mora lá, de se estar, todo dia, ao lado da siderúrgica. Tais impactos mostram também que a demanda processual é muito inferior à complexidade dos múltiplos impactos que a Ternium produz sobre a vida dessas pessoas, como: contaminação constante dos alimentos dos quintais produtivos das casas, mamão, banana, manga, entre outros, “queimados” pelo pó de ferro, sendo que, segundo as/os moradoras/es “Santa Cruz, tudo que plantava dava”; quando terminam de lavar roupa de cama na máquina, a mancha preta vira uma lama preta no fundo; não é possível deixar roupa de um dia para o outro no varal, fica muito sujo de pó preto; a água que colocam para os animais domésticos, se não trocar de um dia para o outro, forma um lodo preto no fundo, um dos moradores relata que se não trocar, sua cachorra fica tossindo; grande aumento de doenças nas crianças, netos e filhos, que passam a ir mais vezes aos postos de saúde, as queixas das mães são de febre, inflamações, entre outras.

São muitos anos de luta, em que as/os moradoras/es repetem, exaustivamente, os danos sofridos desde a chegada da siderúrgica. As ações judiciais tratavam de 3 pontos de impactos: os danos nas estruturas das casas; o material particulado emitido e os danos à saúde. Mesmo não abarcando todos os impactos, essas ações se fizeram como mais uma fonte de esperança de alguma reparação para uma resistência que se faz a mais de uma década. Os desrespeitos à lei, à defensoria pública e aos moradores, cometidos durante a realização da perícia, e os resultados do laudo são extremamente injustos e enviesados. Um momento que poderia ser de mínima reparação, se torna mais uma derrota, uma evidência da desigualdade/assimetrias de poder sobre o território, mais um desrespeito à vida de tantas/os moradoras/es e à saúde ambiental em Santa Cruz e em toda a cidade do Rio de Janeiro.

Uma última esperança de um lugar de justiça pelo judiciário

Considerando o que foi mencionado sobre o processo de perícia, é evidente que o resultado não poderia ser diferente, ele contraria as experiências, narrativas e demandas dos moradores. Como já havia sido previamente alertado, em linhas gerais, o laudo pericial isenta a siderúrgica de qualquer responsabilidade. Ternium e Defensoria já se manifestaram no processo sobre o material apresentado. A siderúrgica se posicionou favoravelmente aos resultados que sustentam a ausência de sua responsabilidade. Já a Defensoria, contrária ao laudo pericial e com argumentos consistentes, realizou inspeção em Santa Cruz, em outubro de 2019, com a presença de parte dos moradores e de representantes do Instituto Pacs. Na ocasião, visitaram o canal São Fernando e algumas residências afetadas a fim de subsidiar seu entendimento. Neste momento, o processo caminha para o final da fase, em que as provas são elaboradas e apresentadas. A próxima etapa, caso o juiz entenda pela validade do laudo — apesar das inconsistências apresentadas pela Defensoria –, tende a ser a sentença, ocasião na qual deverão ser julgados os pedidos de indenização feitos pelos moradores. A despeito do laudo pericial incongruente, caberá ao Poder Judiciário fluminense, uma vez mais, o dever de minimizar as injustiças sofridas pela população de Santa Cruz desde a chegada do complexo siderúrgico.

[1] https://pareternium.org/

[2] Processo n. 0009596–50.2012.8.19.0206, na 1ª Vara Cível da Regional de Santa Cruz.

[3] https://medium.com/@pacsinstituto/notas-sobre-um-laudo-pericial-anunciado-26fb2957342a

[4] Lembre-se que, após decisão consensual entre os representantes das partes e os juízes responsáveis pelas Varas Cíveis de Santa Cruz, as mais de 200 ações judiciais ajuizadas pelos moradores foram reunidas em um único processo, assim nomeado como “paradigma”. Isso significa dizer que todos os atos processuais produzidos no âmbito da referida ação serão aproveitados para os demais, inclusive, o laudo pericial em questão. Nesse contexto, apesar de se tratar de demandas individualizadas, claramente observa-se uma dimensão coletiva associada não apenas ao volume de ações, mas também seu escopo.

[5] Agravo de instrumento n. 0005264–08.2014.8.19.0000, Décima Primeira Câmara Cível, TJRJ.

[6] Esse acompanhamento deu origem ao texto anterior a esse, já citado no início: http://pacs.org.br/2019/02/05/notas-sobre-um-laudo-pericial-anunciado-uma-critica-sobre-o-caso-paradigmatico-entre-ternium-brasil-e-atingidosas/

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