Sem peixe, sem renda, sem justiça: pescadores de Santa Cruz (RJ) relatam impactos causados pela Ternium há mais de 10 anos
Autoria: Instituto PACS / Colaboração: Coletivo Martha Trindade
Jaci tinha 8 anos e acompanhava o pai na pescaria, junto com os irmãos. Vindo de Minas Gerais, a família encontrou na pesca um meio de sobreviver no Rio de Janeiro. Enquanto o pai partia de barco, Jaci e os irmãos ficavam na beira da bacia de Sepetiba, catando siri e vendendo a corda no alto da ponte.
Mais de seis décadas se passaram e a pesca continuou sendo a principal fonte de renda para o Jaci e para centenas de famílias que viviam no bairro de Santa Cruz, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro. “Tínhamos fartura de peixe, variedade e qualidade. De bagre até anchova. Ali do Jurandir a gente panhava ela, não precisava a gente ir para o mar”, lembra Jaci.
Com quase 90 anos de idade, seu Ozeas é outro morador que pesca desde cedo na região. “Aqui tinha o mangue, daqui de Itaguaí até a Pedra de Guaratiba. Eu pescava siri quando era moço. Tinha cardume de tainha, que em um lance de rede a gente pegava mais de mil quilos. A gente ia de barco com o motor até lá na frente, cercava, aquilo era um brinquedo, a coisa mais maravilhosa que eu já vi. A tainha pulava entre 10 e 15 metros de altura por cima da rede”, conta.
Mas a maré começou a virar em 2005, com a chegada da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). O empreendimento de origem alemã, que em 2017 foi vendido para a ítalo-argentina Ternium, mudou a realidade local. A Ternium Brasil, que se afirma como uma das maiores siderúrgicas da América Latina, tem capacidade de produzir 5 milhões de placas de aço por ano.
A empresa inaugurou sua pedra fundamental de construção em 2006 e seu primeiro alto-forno entrou em operação em 2010. Do início da produção até 2016, a Ternium Brasil atuou sem licença de operação. Isenta de diversos impostos e acumulando benefícios, calcula-se que a siderúrgica já recebeu mais de R$ 5 bilhões de recursos públicos investidos.
Ternium Brasil (antiga TKCSA): violações e contaminação
Os impactos da empresa em Santa Cruz começaram ainda na fase de projeto, com a remoção de famílias sem-terra que viviam e produziam no terreno onde a siderúrgica seria instalada. A operação da ferrovia da usina também provocou rachaduras em diversas residências.
Após o início das obras, os moradores passaram a sofrer com enchentes, com restrições, interdições, violações de direitos e, sobretudo, com a poluição provocada pela Ternium, que impacta duramente a saúde da população. Pelo ar ou pelo mar, a contaminação vem, desde então, adoecendo moradores, destruindo biomas e tirando o sustento de pessoas como seu Ozeas e Jaci.
“Eles têm uma vala onde jogam todo o esgoto no rio. Aquela lavagem da química que eles fazem dentro da empresa é toda desovada ou no canal São Francisco ou no rio Guandu”, afirma Jaci. Ele destaca que a poluição provocada pela Ternium diminuiu drasticamente a quantidade e qualidade do pescado. “Hoje, você consegue é quatro, cinco quilos de peixe, ainda por cima com problema de saúde. O peixe tem cabeça, mas do meio pra trás parece uma tábua, porque não tem carne, só espinha coberta com couro. O bagre está com a cabeça mole, por causa da química, porque não conseguiu se desenvolver. O peixe adulto não fica na água poluída, eles vão embora”, ensina.
Além da contaminação que vem destruindo manguezais e acabando com o pescado na região, uma barragem construída em 2015 representou outro duro golpe na vida de diversas famílias. Carente de estudos sobre os impactos econômicos que iria provocar nos pescadores e marisqueiras, foi executado o projeto de instalação da barragem para ampliar a captação de água utilizada pela Ternium.
Um mês após a conclusão da obra, a própria Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz (AEDIN), responsável pelo projeto, reconheceu, em comunicado enviado ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que a instalação da barragem prejudicou a navegação de embarcações de pequeno e médio porte no canal de São Francisco.
“Aí a empresa fez um canal de 40, 45 metros de fundura… como é que a gente vai passar com um barquinho de 5 metros nesse canal do navio pra baía de Sepetiba? Arriscado a gente ir pro fundo do mar, morrer, como já aconteceu. Como aconteceu com o falecido Rubem Moreira e com mais outras pessoas também”, comenta Jaci.
À época, houve reação. No período de construção da barragem, cerca de 50 pescadores atracaram suas embarcações às margens da obra para protestar. A polícia foi acionada e os manifestantes conduzidos à delegacia. Meses depois, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro ingressaram com uma Ação Civil Pública com o objetivo de desfazer a barragem e garantir o pagamento de pensão alimentícia provisória e indenização aos pescadores pelos danos causados.
Após acordo, a Ternium ressarciu alguns pescadores — muitos, no entanto, questionam a legitimidade dos representantes dos pescadores que participaram da negociação. Já a barragem foi retirada, pois se mostrou um projeto ineficiente para a própria siderúrgica que não alcançou o objetivo desejado para captação da água.
“A retirada da barragem foi uma conquista dos pescadores, mas que foi vantagem para a empresa. Tiraram a barragem do São Francisco, mas foram pegar água antes da pegada d´água da CEDAE. De graça!”, destaca seu Ozeas, que ironiza quando perguntado sobre as conquistas dos pescadores. “Grande conquista, estamos envenenados. Onde era um jardim, passou a ser um purgatório”.
Diversas ações movidas pelos moradores seguem em curso. Algumas delas buscam indenizar os pescadores, impossibilitados de trabalhar durante as obras de instalação do empreendimento e prejudicados pelos impactos ambientais causados pela empresa.
A Ternium, no entanto, segue lutando na Justiça para não pagar a indenização a ninguém. Além de não reconhecer os impactos causados pela sua operação, a empresa argumenta que, segundo seus próprios critérios, apenas três pescadores poderiam ser indenizados, pois teriam direito ao seguro defeso à época das obras de instalação. Como até agora não houve definição, por parte do juiz, de qual critério será utilizado para julgar a ação, a incerteza permanece.
Impactos econômicos na vida dos pescadores
Os impactos causados pela redução e contaminação do pescado, além do não pagamento de indenizações, têm trazido consequências econômicas diretas para as famílias de Santa Cruz. Após segundos de silêncio, com uma voz embargada, Jaci descreve a sua atual situação:
“Difícil, né!? Um chefe de família, como eu e outras pessoas, não estamos tendo condições de bancar com nossa despesa, da nossa casa. Estamos sobrevivendo vegetando, mas que dê para arcar com nossa família e pagar as contas em dia, não tem como. Não tem peixe pra isso, não tem espaço pra gente trabalhar”, lamenta.
De acordo com os pescadores, muitos colegas buscam sobreviver trabalhando como ajudante de pedreiro e em serviços gerais. A Ternium Brasil alega gerar milhares de empregos diretos. Não contabiliza, porém, o número de famílias que perderam o seu sustento devido aos impactos causados pela siderurgia, nem a transformação da localidade, que tornou a população de Santa Cruz vulnerável ao modelo de desenvolvimento imposto pela empresa.
E não são os pescadores os únicos prejudicados. Diversas famílias da região, que cultivam frutas e hortaliças em seus quintais, sofrem com a poluição do ar provocada pela produção de aço. Ao ver a foto de um cacho de uva visivelmente contaminado, colhido do quintal de uma moradora, dona Regina, que reside no bairro, foi certeira: “são as frutas falando que o ar tá poluído”.
Além de contaminar os alimentos, a poluição provocada pela Ternium também atinge a saúde das pessoas. Casos de problemas de pele, alergias, problemas respiratórios e câncer são os mais relatados pelos moradores vizinhos à siderúrgica.
Justiça
Apesar de seguirem lutando na Justiça por seus direitos, os pescadores são pessimistas. Perícias que beneficiaram a Ternium durante etapa do processo judicial; falta de sanções, mesmo diante do não cumprimento de acordos ambientais pela siderúrgica; além do “prestígio” que a bilionária empresa tem junto ao poder público, são alguns dos elementos que provocam descrença nos pescadores.
Em setembro de 2021, a Ternium Brasil passará por um processo de re-licenciamento. Uma nova oportunidade para que os órgãos públicos façam cumprir a lei e exigir da empresa uma adequação de sua política ambiental. Também devem avançar algumas etapas dos processos jurídicos em primeira instância. Oportunidade para o sistema judiciário corrigir falhas processuais e fazer justiça!
Se em algum dia os moradores e pescadores forem ressarcidos pelas perdas econômicas provocadas pela Ternium, a destruição ambiental e a desconfiguração do território causam prejuízos incalculáveis. Além disso, as cifras ignoram o significado que a pesca tem para cada um, que não se resume apenas à subsistência, mas forja a própria identidade e dá sentido à vida dos pescadores.
“A pesca faz parte da minha vida, dos meus anos de vida todinho. Ela representa minha atividade, que eu sei costurar rede, jogar tarrafa, navegar um barco, remar um barco. Isso pra mim já é uma grande coisa, o que eu aprendi”, comenta Jaci.
Já seu Ozeas não esconde a ansiedade em voltar a pescar, enquanto se recupera de uma cirurgia. Com a sabedoria de nove décadas vividas, ele sentencia — “se todo mundo soubesse o que é o mar, não jogaria um fósforo dentro do rio para sujar o mar”.
Saiba mais:
Campanha “Pare Ternium”
Relatório “Violações de direitos humanos na siderurgia: o caso TKCSA
Artigo — “A realidade por trás da Ternium Brasil”
https://diplomatique.org.br/a-realidade-por-tras-da-ternium-brasil/
Documentário “Treliça”