Resistência em rede por áreas livres de mineração

Instituto Pacs
11 min readNov 19, 2019

Sobre dizer não e construir caminhos

Por Rafaela Dornelas, pesquisadora e educadora popular do Instituto Pacs

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

Era 9 de agosto e um indígena de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, saía de sua casa rumo ao Rio de Janeiro. No dia 10, uma mulher quilombola do Maranhão e outras mulheres assentadas do Pará também seguiam rumo às terras cariocas. Dia 11, um agricultor do Mato Grosso, um pesquisador do Rio Grande do Sul e muitas outras pessoas, na diversidade desse país, se ajuntavam em um cantinho do bairro Santa Teresa, o Raízes do Brasil que, além do belo nome, traz consigo um pouco da história do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Ao mesmo tempo, em Minas Gerais, Pernambuco e Bahia, o povo se reunia pra pegar junto a estrada. Saindo de muitos lugares, por diferentes caminhos, o destino final de todas essas pessoas era o mesmo: o território da Serra do Brigadeiro, mais precisamente no município de Muriaé, onde participamos, entre os dias 12 e 15 de agosto, do Seminário Diferentes Formas de Dizer Não: estratégias de restrição, proibição e resistência à mineração.

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

A diversidade presente no encontro refletia o esforço de construção coletiva, tocado por três grandes redes e um movimento nacional: Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração (CDTM), Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV) e Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Na bagagem dos que chegavam à Serra do Brigadeiro, muitas tristes histórias sobre os impactos da instalação e permanência dos empreendimentos de mineração nos territórios. Mas, nessa viagem, enchemos também nossas malas com as mais inspiradoras histórias de luta e resistência. Entre tantos motivos, naquele momento, nos encontramos pra trocar sobre como tem sido possível restringir, proibir e resistir à mineração. E pra que tanta estrada pra realizar esse encontro em Muriaé-MG? O povo que nos recebeu por lá constrói, historicamente, uma luta pra que seu território seja reconhecido como área livre de mineração, o que deu origem à Comissão de Enfrentamento à Mineração na Serra do Brigadeiro.

Mas o que acontece nos territórios com grandes empreendimentos de mineração? São muitos os impactos, falemos de alguns: a reorganização dos territórios em torno da atividade minerária faz com que outras economias locais se tornem inviáveis, causando uma monotonização dos ciclos produtivos, ou seja, a mineração passa a figurar como única potência econômica do lugar (COELHO, 2012); a mineração utiliza de forma predatória os recursos naturais, com destaque para a água[1], impedindo a convivência com outras atividades, como a agricultura familiar; um empreendimento minerário traz consigo uma série de violações de direitos humanos, sociais e ambientais das comunidades em que se instalam, isso porque destroem o ambiente, incham as cidades[2] e expõem a população a riscos (como vimos nos casos de rompimentos de barragem em Mariana e Brumadinho). E o mais cruel é que, tendo em vista o poder das empresas, as comunidades nada podem decidir sobre o que fazem ou não com seus territórios. Em geral, o resultado é a contínua penalização de populações já vulneráveis por uma ideia de progresso seletivo.

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

Por que seletivo? Se nos perguntamos: minério pra quê e pra quem? Chegamos a dados que mostram que: a maior parte desse material é exportado (MILANEZ; SANTOS, 2013; MILANEZ; MANSUR; WANDERLEY, 2019). Se levamos em conta a quantidade de recursos naturais e energia consumidos, o setor gera poucos postos de trabalho de forma direta (COELHO, 2012). Os impactos e riscos dos grandes projetos de desenvolvimento são distribuídos desigualmente, de forma que populações de baixa renda, negras, indígenas, com pouco acesso ao sistema de justiça e em situação de vulnerabilidade arcam com a maior parte dos danos (COLETIVO BRASILEIRO DE PESQUISADORES DA DESIGUALDADE AMBIENTAL, 2012). O progresso é seletivo porque se faz à custa do sofrimento de muitas pessoas, da destruição de ecossistemas e da inviabilização de modos de vida.

“Nesse processo, fomos perdendo acesso a rios, cachoeiras, acesso às matas, às terras, às trilhas (…) é uma mineração que chega já com aquele processo de intimidação mesmo, ou seja, impõe medo nas pessoas, e ainda faz as pessoas acharem que elas que são erradas, que eles que estão nas terras que pertencem à mineração”[3], é o que nos conta Claudiana dos Santos, moradora da comunidade de Itapicuru, em Jacobina — BA, sobre a implantação e operação da mineradora Yamana Gold em seu território. Em Bagé — RS, Vera Colares, da comunidade de Palmas e da União Pela Preservação do Rio Camaquã (UPP — Camaquã), conta dos impactos do projeto de instalação da mineradora de chumbo Votorantim Metais e Iamgold Brasil às margens do rio: “é uma ameaça muito forte sobre a gente, porque na verdade ela tá dentro do rio Camaquã, tirando água do rio, que é uma das principais fontes de água que a gente tem na região. Inclusive nossa cidade, Bagé, é famosa por dificuldades com água, passamos já, assim, sem água, com racionamento (…) atacar nossa água é um ataque muito violento sobre nós”. Já no norte do país, no estado do Amazonas, Nildo Fontes, do povo indígena Tukano e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), compartilha conosco a perspectiva da mineração em terras indígenas na atual conjuntura: “em termos do atual governo, sobre ameaças às terras e aos povos indígenas, ela se tornou irreversível a partir do segundo dia de mandato do atual presidente, através do seu discurso e seus decretos. Seus agentes públicos agem diretamente não pra dialogar, é pra avançar mesmo a destruição”.

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

Esses e muitos outros casos de violações de direitos pela mineração foram debatidos ao longo do seminário. Muitos que já têm a mineração instalada traziam consigo elementos da simplicidade e alegria da vida anterior à chegada dos empreendimentos. Outros, que lutam pra que as empresas não se instalem, contam dessa alegria e simplicidade em momento presente, dizendo sobre o que podem perder. As similaridades entre os casos e os diferentes estágios de instalação dos empreendimentos geravam um forte sentimento de solidariedade e troca de informações importantes: principalmente daqueles que já convivem há muito tempo com atividades da cadeia produtiva da mineração e que diziam enfaticamente, e de muitas formas, como esta: “Não deixem esse tipo de empresa chegar, porque depois que elas chegam é bem mais difícil de expulsar. Hoje, quem acreditou que ia ter geração de emprego e foi a favor da entrada da TKCSA, coloca sangue pelo nariz por causa da poeira tóxica que a fábrica solta. As crianças dão oito, nove, dez entradas no posto de saúde por problemas respiratórios. Isso acabou com a saúde das pessoas lá”, desabafou Jaci, pescador do bairro de Santa Cruz, no município do Rio de janeiro, RJ, impactado pela implantação e funcionamento da siderúrgica Ternium (antiga TKCSA).

E quanto às formas de dizer não? Ao longo do seminário, nos esforçamos em refletir a partir de eixos argumentativos mais acionados pelas experiências presentes: “Crítica à monotonização econômica e à destruição de outras economias”; “Defesa e proteção das águas”; “Defesa dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais”; “Proteção ambiental e conservação da biodiversidade”; e “Proteção da saúde e segurança ocupacional”. Em todos os casos, para além dos argumentos em defesa do território, a mobilização popular, a comunicação e as ações coletivas foram de extrema importância.

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

A agricultura familiar e a agroecologia também se destacam nos relatos sobre as alternativas à mineração nos territórios, não como novas práticas, mas como atividades que já existiam e foram inviabilizadas com a chegada dos empreendimentos, como nos conta a companheira Claudiana dos Santos: “A gente nunca sentiu falta de mineração, a gente não dependia de mineração pra nada, ao contrário: foi quando a cidade morreu. Mas na realidade é porque o foco muito da cidade era a agricultura. Então como a agricultura foi se perdendo por conta que não tem água pra você fazer o processo da agricultura, a cidade foi ficando cada vez mais dependente da mineração”. O agricultor Carlos Alberto, do distrito de Belisário, enfatiza a necessidade de pensarmos o que há, no processo de resistência, além do “dizer não” à mineração: “Não é apenas dizer não. Temos que dizer não e temos que dizer o porquê. E nós resistimos porque queremos continuar produzindo, mostrando que a terra dá alimento, sustentável e pra sempre. Na produção da bauxita, a colheita é uma vez só e acaba com tudo. É a nossa resistência… Uma resistência alegre. Não é de briga, apesar das ameaças”.

No seminário, contamos com relatos de experiências exitosas em restringir, proibir e resistir à mineração, não apenas no Brasil, mas também em outros países da América Latina, como Peru, Argentina e Costa Rica. Essas histórias nos ensinam que lutar para que a mineração tenha limites é lutar também pelo reconhecimento de alternativas econômicas locais, como o turismo de base comunitária, agricultura familiar, pesca, entre outras. Então, o que as populações atingidas buscam ao lutar por áreas livres de mineração? Nildo Fontes, do povo indígena Tukano, diz: “A manutenção desse território livre de mineração, ela significa a continuidade da vida, desses povos com sua história, com sua cultura, com sua diversidade”. Surpreendida com a pergunta, Elizete Pires, de Conceição do Mato Dentro — MG, área duramente impactada pela mineração da Anglo American, de forma simples, nos ajuda a encontrar (e encantar) o sentido nas áreas livres: “Acho que eu fico sem palavra pra dizer o que seria… Porque acho que voltava tudo como era antes, assim…acho que o povo ia ter união, ter as plantações de volta, ter a água de volta, ter o lazer de volta. Acho que seria um território mais de felicidade assim mesmo…”.

Foto: Daniela Fichino / Justiça Global

Abaixo, a Carta de Muriaé, documento que sintetiza as principais reflexões, análises e convergências ao longo do Seminário:

Nós, comunidades, organizações e movimentos de 15 estados brasileiros, reunidos na Serra do Brigadeiro (Muriaé/MG) entre 12 e 15 de agosto de 2019, no Seminário Nacional “Diferentes Formas de Dizer Não: experiências de proibição, resistência e restrição à mineração”, reafirmamos que a mineração é uma atividade destruidora dos ambientes, dos ecossistemas, da biodiversidade e de vidas humanas, prejudicando crianças, jovens, adultos, idosos, mulheres, homens, LGBTTs e povos tradicionais que habitam os territórios expropriados pelas empresas mineradoras.

Os crimes cometidos pelas mineradoras em Mariana e Brumadinho comoveram a sociedade brasileira e o mundo e demonstraram os poderes destrutivos, desumanos, cruéis e indiferentes desse setor frente às comunidades, aos trabalhadores e trabalhadoras e às necessidades reais de toda a sociedade brasileira. O desrespeito aos direitos básicos praticados por essas empresas atingem também os trabalhadores e trabalhadoras da mineração, apontando a necessidade de se construir lutas e pautas conjuntas rumo a uma transformação estrutural do modelo mineral brasileiro, em que sejam questionadas as bases de produção e consumo que sustentam essa cadeia movida à violência e violação de direitos.

A mineração está assentada em interesses de lucros acima de tudo se beneficiando e agravando as múltiplas injustiças históricas como o racismo, o etnocentrismo, o machismo e o patriarcado, impactando as comunidades negras, indígenas, pescadores e pescadoras e outros povos tradicionais, populações urbanas e camponesas, afetando a diversidade sociocultural e invisibilizando e/ou inferiorizando a existência dos povos e comunidades, violentando e criminalizando suas lutas e modos de vida.

Nesse contexto, é necessário tomar atitudes éticas e urgentes, dentre as quais reconhecer e instituir Territórios Livres de Mineração. Libertar os territórios e os povos da violência das mineradoras deve ser um compromisso urgente de toda a sociedade e do Estado, pois dizer NÃO à mineração significa dizer SIM às múltiplas potências e alternativas de produção e diversidade sociocultural, aos ecossistemas e a biodiversidade. Significa garantir Água, Alimento, Terra, Território e Florestas que geram benefícios para além das fronteiras territoriais das comunidades e sujeitos que produzem e preservam esses bens comuns.

Dizer NÃO significa recusar a lógica de dependência econômica que a mineração impõe aos municípios minerados, ante a finitude dos minérios e a permanência dos passivos e contaminações deixados nos territórios, para dizer SIM a outras atividades econômicas que sejam socialmente justas e ambientalmente sustentáveis, como a agricultura familiar, a agroecologia, o turismo de base comunitária e ecológica, o agroextrativismo e os modos tradicionais de trabalhar, produzir e viver dos povos e comunidades, capazes de garantir a Soberania e Segurança Alimentar.

Nesse processo é justo reconhecer os esforços e acúmulos das comunidades violadas que carregam histórias de organização e de conhecimentos ancestrais, de práticas milenares ou inventivas de produção e organização social que não são apenas alternativos à mineração, mas sobretudo vinculadas e comprometidas com a vida.

Essas comunidades, junto com seus parceiros criaram e implementaram em suas lutas por sobrevivência de si e de seus territórios diferentes formas de enfrentar essas violências quando o Estado e a sociedade, de um modo geral, não se atentam, ou desconsideram as riquezas econômica, social, política, cultural e espiritual dos povos. As comunidades têm histórias próprias, de organização comunitária, e busca de acesso às instituições e políticas públicas, legislações nacionais e internacionais e construção de alianças com múltiplos sujeitos, estando portanto capazes de aportar para a sociedade brasileira profundos conhecimentos e práticas que rompam com os ciclos de violência da mineração e dos sujeitos que a implementam e/ou a defendem.

Portanto, reiterando os compromissos com a vida, com a solidariedade, o bem comum, o bem viver e a diversidade, reafirmamos o direito da sociedade de dizer NÃO à mineração.

Muriaé, 15 de Agosto de 2019

71 organizações assinam a carta, confiram no link: http://pacs.org.br/files/2019/08/Carta-de-Muriae%CC%81-por-territo%CC%81rios-livres-de-minerac%CC%A7a%CC%83o.pdf

Referências Bibliográficas:

ACSELRAD, Henri et al. Desigualdade ambiental e acumulação por espoliação: o que está em jogo na questão ambiental?. Coletivo Brasileiro de Pesquisadores da Desigualdade Ambiental. e-cadernos ces, n. 17, 2012.

COELHO, Tádzio. Mineração e dependência no quadrilátero ferrífero. Revista Intratextos, v. 3, n. 1, p. 128–146, 2012.

DOS SANTOS, Rodrigo Salles Pereira; MILANEZ, Bruno. Neoextrativismo no Brasil? Uma análise da proposta do novo marco legal da mineração. Revista Pós Ciências Sociais, v. 10, n. 19, 2013.

MILANEZ, Bruno; MANSUR, Maira Sertã; DE MORAES WANDERLEY, Luiz Jardim. Financeirização e o mercado de commodities: uma avaliação a partir do setor de mineral. Revista Tamoios, v. 15, n. 1, 2019.

[1] Dados estimados de uma mineração a céu aberto é de que ela tem uma captação de 9.000 m³ de água por hora, podendo subir para 20.000 m³ por hora no caso de uma mineração subterrânea, considerando-se uma média entre as diferenças por tipo de minério e tecnologias utilizadas. Um mineroduto, que é uma das infraestruturas utilizadas para transporte de minérios, gasta 2.500 toneladas de água por hora (https://fase.org.br/wp-content/uploads/2019/08/A-minera%C3%A7%C3%A3o-vem-a%C3%AD.-E-agora_Web.pdf)

[2] O inchaço se dá com trabalhadores homens, que vão sem suas famílias (quando tem), e isso provoca o aumento dos casos de abuso sexual contra meninas e mulheres, além de incentivar o mercado da prostituição.

[3] As falas nesse texto são retiradas do registro em vídeo do Seminário Diferente Formas de Dizer Não, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=_nZQzwmHUfA&t=3s ; e das reportagens sobre o encontro no site do Instituto PACS, disponível em: http://pacs.org.br/

--

--

Instituto Pacs
Instituto Pacs

Written by Instituto Pacs

Instituto Pacs é uma organização sem fins lucrativos dedicada a promoção do Desenvolvimento Solidário. http://pacs.org.br/

No responses yet