Quem se beneficiou do endividamento público durante a ditadura?
por Marcos Arruda, socioeconomista e educador do Pacs | pacs@pacs.org.br

No período em que dominaram o Brasil, os governos empresários-militares fizeram a dívida pública explodir. O sobre-endividamento tornou-se, desde então, uma doença crônica, que tem sangrado continuamente o orçamento público e desempoderado o Estado da sua capacidade de realizar as funções de promoção de um desenvolvimento soberano, endógeno e gerador de bem viver para e com toda a população.
Quem se beneficiou com esta política de tomada desenfreada de empréstimos estrangeiros, a ponto de afundar o país na maior dívida do hemisfério Sul? As condições impostas pelos credores — principalmente os grandes bancos transnacionais — e seus próceres, as agências multilaterais de governança global, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento — eram justas e adequadas? Houve violações da legislação brasileira e internacional neste processo de endividamento? É justo que o país, que apresentava taxas de pobreza relativa e de desigualdade social das mais altas do mundo, tenha estado, desde então, escravizado a pagar um tributo neocolonial aos credores (bancos privados, governos do hemisfério Norte, e agências multilaterais), sendo grande parte dele como juros de usura? Era possível fazer algo para cancelar a dívida ilegal e ilegítima, e reestruturar os pagamentos de modo que não beneficiassem apenas os credores, mas também o Brasil e seu povo?
Hoje, o Brasil figura como sexta maior economia do mundo, medida pelo PIB. E como 85º país medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD. Que fatores atuam na geração e manutenção deste abismo que separa o crescimento econômico do bem estar social relacionado com os direitos humanos mais fundamentais?


Os dados sobre a evolução da distribuição da renda e da terra no Brasil em períodos que incluem os 21 anos de ditadura são eloquentes (Tabela 1 e 2). Revelam que a ditadura propiciou as condições político-econômicas para a concentração da renda e da terra, aprofundando também a desigualdade entre os ganhos do capital e os do trabalho

Orçamento Geral da União (Executado em 2014): Total=R$2,168 trilhões

O gráfico acima inclui o refinanciamento ou “rolagem” da dívida, pois o governo contabiliza neste item grande parte dos juros pagos. O gráfico revela a desproporção aberrante entre os gastos feitos pelo governo federal com itens relacionados ao bem comum da Nação (saúde, educação, saneamento, habitação, energia, transporte, gestão ambiental, etc.) em contraste com as despesas com a dívida pública. O sobre-endividamento é de tal monta que a auditora federal Maria Lucia Fattorelli o qualifica como Sistema da Dívida. Um sistema criado com o fim de perpetuar a condição do Brasil de país sub-industrializado, provedor de matérias-primas e produtos semimanufaturados aos países altamente industrializados do hemisfério Norte, e importador de bens, serviços e tecnologia desses mesmos países; em resumo, quase dois séculos depois da declaração da independência, o Brasil continua submisso à condição de elo empobrecido da cadeia de realização do capital globalizado.
A dívida pública atual (julho de 2015) ultrapassa os R$ 4 trilhões. A dívida externa bruta do país beira os US$ 555 bilhões. Só em 2014 o orçamento da União dedicou até dezembro o equivalente a R$ 978 bilhões, ou 45,11% dos gastos federais, ao pagamento de juros e amortizações, mais a rolagem da dívida pública. Foi nos anos 1970 que o Brasil começou a se afundar na síndrome de um endividamento que tem servido aos mais ricos e sobrecarregou as classes médias e pobres, e tem bloqueado o verdadeiro progresso e o pleno desenvolvimento dos potenciais desta grande Nação que é o Brasil.
A origem do sobre-endividamento remonta à ditadura civil-militar de 1964–1985. Sua perpetuação constitui a ditadura da dívida. Sem o fim desta ditadura, o Brasil não conseguirá superar sua condição de nação recolonizada, nem as finanças públicas poderão cumprir seu papel de instrumento que viabilize o desenvolvimento endógeno e democrático do consumo e da produção, a serviço do objetivo maior que é o desenvolvimento humano e social de cada um e de todos os cidadãos e cidadãs do Brasil.
Endividamento Externo é risco para a soberania e mecanismo de concentração de renda
Há uma maneira ‘menos perniciosa’ de uma nação se endividar. É quando ela toma empréstimos externos produtivos, em quantidade gerenciável, que geram excedente suficiente para compensar o pagamento dos juros, para além do principal. ‘Menos perniciosa’ porque os juros são compostos, isto é, calculados sobre o valor inicial do empréstimo, e não sobre o restante do principal a pagar. Isto representa a cobrança de juros sobre juros. Todo o sistema financeiro internacional funciona segundo este método usurário, que vitima sobretudo os países endividados de mais baixa renda.
Mas a maneira “mais perniciosa” é aquela que envolve empréstimos com juros flexíveis, tomados para fins incapazes de gerar excedentes no prazo de pagamento dos mesmos, em quantidade superior à capacidade de pagamento da nação, e cujos contratos colocam como autoridades para a resolução de conflitos agências jurídicas dos países credores.
Formação do círculo vicioso do endividamento público
Os governos da ditadura são responsáveis pelos empréstimos mais perniciosos, que multiplicaram a dívida por 24 entre 1969 (início do governo do ditador Médici, sob o Ato Institucional no. 5) e 1985 (fim dos governos militares); ou por 35, se tomarmos como referência 1964 a 1985. De início, a dívida pública explodiu como dívida externa. Os governantes e os grandes empresários tomaram uma massa de empréstimos externos que elevou a dívida a níveis impagáveis, não só pelo montante a pagar, mas pelo tipo de juros e outras condicionalidades que agrilhoavam esta dívida.
Aos poucos, os devedores privados foram encontrando formas de desendividar-se, em parte criando mecanismos de refinanciamento, reduzindo sua vulnerabilidade e logrando que os sucessivos governos estatizassem parcelas importantes de suas dívidas.

O estoque da dívida externa evoluiu de forma agressiva, sobretudo ao longo dos governos Geisel (1974–1978) e Figueiredo (1979–1985), como mostra a Tabela 4. Isto resultou da forte influência dos interesses empresariais e financeiros privados — nacionais e estrangeiros — sobre as políticas econômicas adotadas pelos generais no poder. O avanço obtido na industrialização na década de 70 coincidiu com a tomada maciça de empréstimos externos por grandes empresas privadas — inclusive estrangeiras — e estatais, e pelo Governo Federal, em condições facilitadas, mas não duradouras. Esse avanço foi estrangulado pela crise do sobre-endividamento, como consequência do aumento explosivo da taxa primária de juros dos EUA. (Tabela 5) A partir de 1973, a taxa primária dos EUA deixou seu patamar histórico em torno de 6% e subiu até alcançar 21,5% em dezembro de 1980. Foram sete anos de taxas de dois dígitos, definidas unilateralmente pelo Banco da Reserva Federal[1], que tiveram efeitos desastrosos sobre as contas públicas de todos os países altamente endividados, como era o caso do Brasil, do México, da Argentina, e de tantos outros. Esse aumento foi o estopim para que um item de detalhe dos contratos de dívida externa fosse acendido: a cláusula dos juros flexíveis.

Foi o Estado, — tanto o Tesouro e o Banco Central como as estatais, portanto, os contribuintes — que arcaram com o ônus maior do sobre-endividamento. E o pagamento dos juros foi viabilizado através da política de maximização dos saldos comerciais com o fim de obter divisas, e da captação de moeda nacional junto aos bancos que operavam no Brasil. Esse último foi o mecanismo responsável pelo aumento exponencial da dívida mobiliária interna.
Os governos da ditadura usaram empresas estatais para captar dólares a fim de financiar projetos que podiam ser financiados em moeda nacional. Elevaram artificialmente as taxas de juros internas de modo a forçar empresas públicas e privadas a buscarem empréstimos no exterior. Aceitaram a condição draconiana de tomar empréstimos a juros flexíveis, colocando nas mãos dos credores o futuro das finanças nacionais.
Parte da dívida externa pertencia a empresas privadas nacionais e estrangeiras. Mas os sucessivos governos avalizaram estes contratos. Frente à insolvência ou mesmo à falência das empresas tomadoras, essas dívidas foram estatizadas, transferindo-se aos contribuintes o ônus de pagá-las. Em consequência, da renda per capita de US$ 1.619,00 que o Brasil obteve em 1984, penúltimo ano da ditadura, US$ 781 estavam empenhadas na dívida externa.[2]
Pagamentos — transferência líquida
Para resolver o problema do crescimento vertiginoso da dívida e dos encargos a pagar ao exterior, os credores impuseram através do FMI a política de tomar empréstimos para pagar os juros acumulados e administrar uma recessão programada da economia interna, deprimindo a demanda via baixos salários e altas taxas de juros, e promovendo a ilusão de que os sucessivos saldos comerciais iriam viabilizar perpetuamente o serviço da dívida.
Consequências do sobre-endividamento

Em consequência, o Brasil gradualmente tornou-se exportador líquido de capital, transferindo mais divisas ao exterior, via pagamentos, juros, e remessa de lucros e dividendos, do que recebia. De 1980 a 1985, último ano da ditadura, o Brasil enviou para fora US$ 28,5 bilhões a mais do que recebeu do exterior. Se comparado o saldo comercial com o pagamento da dívida no período, temos um déficit de US$ 64,8 bilhões, parte dos quais se converteram em nova dívida, perpetuando a lógica do sistema da dívida, “quanto mais paga, mais deve”.
A DITADURA E OS BANCOS: ABERTURA AO CAPITAL TRANSNACIONAL E OLIGOPOLIZAÇÃO DO SETOR BANCÁRIO E FINANCEIRO
O amplo estudo político-econômico de Ary Minella sobre os bancos e os banqueiros (Minella, 1988) oferece uma rica análise dos inícios do processo de financeirização da economia brasileira, expresso na concentração e centralização do capital financeiro e na acelerada desnacionalização do sistema financeiro brasileiro, gerando um segmento burguês altamente poderoso, oligopolista e especulativo: os banqueiros.[3] O golpe civil-militar de 1964 criou o ambiente propício ao êxito deste processo, e tornou-o viável ao reprimir e desarticular a luta pela reforma bancária e financeira anterior ao golpe.
Centralização e Gigantismo dos Bancos
Os bancos e casas bancárias totalizavam 358 em 1960, incluindo oito bancos estrangeiros. Em 1980 esse número reduziu-se para 111. Só contando os bancos com base no Brasil, a redução foi de 350 para 95 no período, incluindo os privados e os governamentais. Por sua vez, os bancos estrangeiros passam de oito em 1960 para 17 em 1980. De fato, 256 bancos privados nacionais desapareceram entre 1960 e 1980. O número de bancos comerciais oficiais permaneceu idêntico e os transnacionais mais que dobraram em número.
Tal centralização resultou das condições fiscais e legais favoráveis criadas pelos governos da ditadura. A tendência à oligopolização ou monopolização se manifestou também nas estruturas regionais e transregionais. Desde 1960, a centralização regional favoreceu a Região Sudeste, e em 1978 seis dos dez maiores bancos do país tinham sede nesta região (Bradesco, Itaú, Mercantil de São Paulo, Real e Unibanco. Os outros quatro eram Bamerindus, Econômico, Nacional, Sul Brasileiro). Sete dos dez maiores bancos tinham mais agências em outros estados do que no estado-sede. Este processo de expansão oligopólica dos bancos comerciais privados progride durante as décadas da ditadura, levando mais tarde à acelerada privatização e ao rápido desaparecimento dos bancos públicos de quase todos os estados.
Concentração do Capital e da Riqueza
O menor número de bancos, cada vez maiores e mais poderosos, tem relação direta com o processo de concentração do capital financeiro e da riqueza em um número cada vez menor de mãos cada vez maiores e mais vorazes. Este processo se acentua a partir de 1965. Já existiam instituições bancarias que eram ao mesmo tempo independentes na esfera jurídica, mas pertencentes a um mesmo grupo ou conglomerado. Nos anos 70, quando nova legislação facilitou a fusão desses bancos ao banco líder do grupo, ficou mais clara e precisa a visão da concentração em processo.
Presença de banqueiros privados no setor público — Desde o golpe de abril de 1964, os banqueiros prestaram todo o apoio ao governo militar recém-formado e fizeram diversos congressos a fim de preparar sua versão privatista de Reforma Bancária. O Estado e suas agências teriam como missão operar com base na “lógica do serviço ao público”, em contraste com a “lógica do lucro” que prevalece no setor privado. Contudo, a presença de banqueiros privados no setor público durante a ditadura distorceu a função pública do Estado, tornando-o cativo dos interesses privados da burguesia financeira. Minella (1988: 163) aponta com propriedade:
“No Brasil, os banqueiros ou seus intelectuais orgânicos assumiram frequentemente a diretoria dos bancos públicos ou puderam interferir ao assumir o governo estadual, a Secretaria de Fazenda dos estados ou os ministérios do governo Federal. Na prática, isso significa uma centralização do mando sobre capitais públicos e privados. Incrementa-se, dessa forma, o poder de determinação de um banco ou de um grupo de bancos ou banqueiros sobre recursos bancários e financeiros e sobre a política a ser adotada para o setor.” (Ary Cezar Minella)
Jânio Quadros nomeou presidente do Banco do Brasil o banqueiro e empresário Leopoldo Figueiredo, vinculado ao capital estrangeiro. O ditador Castello Branco (1964–67) deu a presidência do BB ao grande banqueiro paulista Luiz de Moraes Barros, que também integrou o Conselho de Administração do BB em 1979, ao lado do grande banqueiro do grupo Econômico Angelo Calmon de Sá, ex-presidente do BB entre 1974 e 76, época em que Mário Henrique Simonsen, vinculado ao grupo Bozano-Simonsen, ocupava o Ministério da Fazenda do ditador Geisel. O Banco do Estado de São Paulo, o maior banco comercial estadual, foi dirigido por banqueiros como Gastão Eduardo de Bueno Vidigal, que também foi secretario de Fazenda desse estado.
Sistema Bancário Centralizado e Concentrado: Ator do Endividamento Externo
O acesso de empresas estrangeiras ao crédito interno significa a internacionalização da poupança do País em favor dessas empresas. O Brasil é um dos palcos desta espoliação, no contexto de uma América Latina com suas “veias abertas”, sofrendo sangria não apenas dos seus recursos naturais, mas também dos financeiros.
O papel dos bancos privados internacionais na oferta global de empréstimos para a economia brasileira foi relevante nas décadas da ditadura. Os bancos brasileiros, e os estrangeiros sediados no Brasil, serviram de intermediários na captação de empréstimos para o setor público brasileiro. Sua comissão por esta função variou entre 4 e 14%.
A Resolução 63 do BCB de 21.8.1967 permitiu aos bancos comerciais e de investimento contratar diretamente empréstimos no exterior e repassá-los às empresas no Brasil, para financiamento de capital fixo e para o circulante. Este instrumento legal inaugurou o processo de participação crescente do setor bancário no endividamento do Brasil[4].
MERGULHO NO ABISMO: OS EMPRÉSTIMOS EM MOEDA A JUROS FLUTUANTES
Nos primeiros anos de ditadura, os financiamentos comerciais foram gradualmente perdendo relevância em favor dos empréstimos em moeda. Em 1970 estes já representavam 43,14% da dívida externa, passando para 70,23% em 1980 e 75,38% em 1982. Os desembolsos através dos mecanismos da Resolução 63 passaram de US$ 653 milhões em 1970 para US$ 13,5 bilhões em 1981. Isto é, os empréstimos dos bancos transnacionais aos bancos brasileiros, e aos estrangeiros estabelecidos no Brasil, saltaram de 12,33% em 1970 para 21,9% do total da dívida externa em 1981. Só o Bradesco tinha, no seu balanço de 1982, 28% declarados como transações de repasse de moedas estrangeiras. Mas o volume repassado pelo Bradesco equivalia a apenas 7% do total repassado pelo Citibank, dos EUA, cujo vice-presidente da matriz estadunidense era Mario Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda durante o governo do ditador Geisel (1974–78).
Com a renovação continuada das associações dos bancos brasileiros com os credores transnacionais, os recursos provenientes dos empréstimos em moeda ganhavam participação cada vez maior na composição dos passivos e ativos dos principais bancos brasileiros.
Note-se que os bancos que tomavam crédito externo em moeda tinham liberdade de ação em relação às finalidades e aos prazos destes empréstimos, sem obedecer a quaisquer prioridades definidas pelo Plano Nacional de Desenvolvimento. Foi possível, assim, que as práticas especulativas se ampliassem, sem qualquer benefício para o País e para a população que, afinal, era quem pagava por estes empréstimos.

O CRÉDITO EXTERNO PASSA DE APOIO AO INVESTIMENTO PRODUTIVO A FUNDAMENTO DA ECONOMIA SUBALTERNA DO BRASIL
O objetivo inicial dos empréstimos em moeda era financiar investimentos produtivos, capazes de gerar excedentes que cobrissem os juros e viabilizassem o pagamento do principal da dívida. Eram vistos como combustível financeiro para a industrialização do Brasil e para o desenvolvimento de uma potente infraestrutura a serviço dela.
Contudo, a financeirização promovida pelo Estado ditatorial, em estreito consórcio com os interesses corporativos transnacionais, levou a dívida para outro rumo. Um dos fatores desta mudança de rumo e de natureza foi o crescimento exponencial da dívida externa, sobretudo de 1969 em diante, que excedeu definitivamente a capacidade de pagamento dos devedores mediante seus saldos comerciais. Outro foi o fato de a entrada de empréstimos em moeda ter superado, ainda nos anos 60, a entrada de capital de risco. Outro ainda foi a capitalização dos juros cujo pagamento atrasava, transformando o endividamento externo numa bola de neve impagável, dado que o País começou a tomar mais empréstimos para pagar a dívida do que para investimentos produtivos.
Entre 1969 e 1985 o Brasil teve três presidentes-ditadores, os generais Médici, Geisel e Figueiredo. É importante ter em mente que, sob sua autoridade, os ministros da Fazenda Delfim Netto, Mario Henrique Simonsen e Ernane Galvêas abriam a economia aos bancos e corporações transnacionais, aprofundavam a exploração das classes trabalhadoras, destruíam as condições de um desenvolvimento endógeno, soberano e democrático do Brasil, e afundavam o País numa dívida impagável. Para garantir este modo de gestão da economia, o governo impunha ao País uma brutal repressão, prendendo e assassinando muitos dos que se opunham ao regime ditatorial, e eliminando todos os direitos da cidadania.
Saiba Mais
Como a dívida pública cresceu durante cada um dos governos militares
A RESPONSABILIDADE DOS BANCOS E DAS GRANDES EMPRESAS NO SOBRE-ENDIVIDAMENTO EXTERNO
Mesmo tendo sido o Estado, diretamente ou através das estatais, o protagonista do sobre-endividamento dos governos ditatoriais, o grande capital privado nacional e transnacional são fortemente responsáveis pela implantação do círculo vicioso do endividamento, que resultou na realidade terrível que é o sistema da dívida: “quanto mais o Brasil paga, mais deve”. Entretanto, não sofreram consequências fatais da crise do endividamento, primeiro, porque foram estimulados pelo próprio Estado a reestruturar seus patrimônios, investindo maciçamente nos títulos do governo — tornando-se credores da dívida interna do governo — e passando a contar com lucros financeiros substanciais, provenientes das altas taxas de juros, maiores mesmo que os gerados pelo faturamento com a produção e comercialização de bens e serviços. Cresceu a economia especulativa, à custa do afundamento da economia real.
Segundo publicação da Associação dos Funcionários do Banco Central (Alves, 1987:5), a carga tributária líquida caiu de 17,4% em 1970 para pouco mais da metade em 1985. O autor mostra que entre 1973 e 1985 a perda acumulada de receita pela via das renúncias fiscais em benefício sobretudo do grande capital privado alcançou US$ 153 bilhões em valores de 1985, superando o saldo da dívida líquida do setor público em 1985. A redução da dependência do capital externo por esses atores resultou num excedente que não foi canalizado para a produção interna, mas sim para a compra de títulos públicos, passando de contribuinte a credor do governo. Segundo o BCB, entre 1982 e 1986, a dívida interna convertida em cruzeiros correntes passou de 9,7 bilhões para 923 bilhões, ou 100 vezes mais. Esta tendência continuou se aprofundando, levando a dívida interna bruta a ser, de janeiro a setembro de 2014, mais de três vezes maior do que a dívida externa bruta, pagando aos seus credores taxas de juros reais que são das maiores do mundo. Este é um caminho que leva certamente o Estado ao precipício da insolvência, e a sociedade à condição mais degradada e indignada.
Em suma, os governos corporativos-militares realizaram a façanha macabra de transformar o Estado brasileiro numa grande máquina parasitária, usando os fundos públicos a serviço do pagamento dos juros aos grandes grupos econômicos e financeiros estrangeiros e nacionais. O custo disso foi arcado pela estrutura produtiva nacional, o mercado interno, os assalariados e a massa crescente de marginalizados.
Quanto aos grandes bancos, sobretudo os que se associaram a grandes bancos estrangeiros, eles tomavam empréstimos em moeda no exterior para repasse na economia interna. Como o governo mantinha as taxas de juros internas altas, a fim de atrair os especuladores a comprarem títulos do governo para que este reciclasse internamente as divisas que entravam, a atividade especulativa passou rapidamente a ser mais rentável que o investimento produtivo.
Até 1975, a participação das instituições privadas no endividamento externo via Lei 4131[5] foi dominante. Em 1972 elas controlavam 75% do total destes empréstimos, reduzindo gradualmente sua parcela até 13% no final de 1985. Os que melhor lucraram e cresceram foram os que tinham delegação de competência do BCB para fazer transações em moeda estrangeira. No que se refere aos empréstimos via Resolução 63, de natureza essencialmente financeira e, portanto, usados para fins especulativos, e não tanto produtivos, os bancos privados só perderam a liderança sobre os públicos em 1974 e 1975. Em fins de 1985, chegaram a controlar 75% do total dessas captações. Em novembro de 1986, quando o governo liquidou o Plano Cruzado, os empréstimos para repasse ainda estavam num patamar de quase 90% dos recursos próprios e o total dos empréstimos externos em quase duas vezes os recursos próprios dos bancos comerciais.
Constata-se, pois, que a propensão dos bancos comerciais a endividar-se aumentou de forma surpreendente durante os anos 70, chegando a níveis de endividamento de alto risco no início dos 80. Efetivamente, só depois do Plano Cruzado, em 1985 é que aqueles níveis foram reduzidos. Ficou também evidente que entre 1981 e 1985 os empréstimos externos tomados pelos bancos comerciais foram uma fonte de lucro superior aos depósitos nacionais, situação que só se inverteu com a implementação do Plano Cruzado, quando tenderam a incentivar a transferência de recursos da especulação financeira para o setor produtivo. É certo que a atividade de intermediação neste período, em que vigoraram taxas de juros muito elevadas e a retração das atividades produtivas, gerou lucros extraordinários para os bancos comerciais e suas redes de empresas financeiras, e facilitou o processo de centralização e de concentração do capital bancário.
Note-se que a evolução destes indicadores durante os anos 70 e início dos 80 eram suficientes para revelar aos bancos credores do exterior que tais empréstimos eram de risco extraordinariamente alto e iam além da prudência necessária à administração de recursos de terceiros. As dificuldades de solvência que emergiram com a crise da dívida a partir de 1982 só pegaram os credores desprevenidos porque eles estavam embalados na ilusão de que a máquina de fazer lucros fáceis e rápidos com o sobre-endividamento irresponsável dos tomadores públicos e privados nunca iria entrar em pane.
Onde estava o pragmatismo de todos esses atores do sistema da dívida? Eles preferiram lucros fáceis e rápidos à prudência e visão estratégica. Não há dúvida de que os credores — governos, bancos privados e agências multilaterais — são co-responsáveis da crise que explodiu em 1982 e transformou os anos 80 em década perdida do desenvolvimento. Portanto, deveriam arcar com sua parte desta responsabilidade.
Isto prova que o sobre-endividamento do Brasil é ao mesmo tempo um problema técnico e político, um problema contábil e ético. E coloca no banco dos réus os fazedores de política de então (os generais-presidentes, seus ministros e diretores das agências governamentais), tanto quanto os conglomerados bancários e financeiros e as empresas do setor industrial que participaram desta ciranda do sobre-endividamento.
Para saber mais sobre o envolvimento de empresas do setor industrial e de serviços com o sobre-endidamento, bem como o sobre-endividamento das estatais, leia o artigo completo, aqui.
GANHANDO COM A PARCERIA DITADURA — CAPITAL TRANSNACIONAL
Com a ajuda dos governos da ditadura, as empresas transnacionais colaboraram com o sobre-endividamento externo, a descapitalização e a desindustrialização do BRASIL.
Estudo de Ricardo Bueno (1980:45–53) mostra como a ditadura facilitou a penetração de empresas e bancos transnacionais na economia brasileira, e como o capital estrangeiro foi um fator de sobre-endividamento, descapitalização e desindustrialização da economia nacional, em vez de contribuírem para o desenvolvimento do País com sua poupança.
Levantamento da Gazeta Mercantil a partir dos balanços das empresas estrangeiras para 1977 revelou uma face particularmente perversa das atividades destas empresas nos anos da ditadura:

Volkswagem: teve um lucro de Cr$ 9,5 milhões em suas atividades produtivas normais. Já os lucros não-operacionais (não provenientes da produção e venda de carros, mas de atividades especulativas — mercado aberto, câmbio, terra) alcançaram Cr$ 573 milhões! Seu ganho especulativo só no mercado aberto foi foi 5.391% superior aos lucros operacionais.

Olivetti: empresa italiana, especializada em máquinas de escrever, teve lucros operacionais de Cr$ 11,1 milhões e ganhos no mercado aberto de CR$ 77,5 milhões, ou sete vezes mais.

Sears Roebuck: teve prejuízo operacional de Cr$ 37,7 milhões e lucros não operacionais de Cr$ 122,8 milhões.

Standard Electric: apresentou lucro operacional de Cr$ 79,8 milhões e não-operacional de Cr$ 329,3 milhões. O balanço final foi positivo em Cr$ 234,8 milhões.
Desta forma, o sistema financeiro promovido pela ditadura estimulou a atividade financeira especulativa a ponto de atrair capitais estrangeiros para fora da sua atividade produtiva principal, e assim arrebanhar fundos do Banco Central que poderiam ser usados para gastos relacionados com o desenvolvimento humano e social da população.
O Anexo 1 apresenta listas de empresas que tomaram empréstimos externos durante a ditadura, e se beneficiaram do aval governamental. O tempo da pesquisa não foi suficiente para identificar quais tiveram problemas de atraso no pagamento dos juros, ou de insolvência, e se beneficiaram da estatização de sua dívida. A estatização de dívidas externas privadas é um dos graves indícios de ilegalidade identificados pela CPI da Dívida Pública, a ser investigados por uma Comissão Parlamentar de Auditoria da Dívida Pública.
CONCLUSÃO
Há muito mais material a ser pesquisado e incluído nesta temática da parceria da ditadura brasileira com o grande capital privado nacional e estrangeiro, em particular no que se refere a diversas formas de enriquecimento corporativo que aprofundaram direta ou indiretamente o endividamento público do Brasil.
O valor total dos pagamentos da dívida desde o golpe militar-corporativo de 1964 até 2014 excedem R$ 10 trilhões. Isto representa uma sangria de capitais que teriam servido para tornar o Brasil um país social e economicamente desenvolvido. Tais recursos, gerados com o suor e o sangue do povo brasileiro, foram acumular-se nas contas bilionárias dos credores internos e externos. A cumplicidade dos governos entre 1964 e 1985 foi um fator decisivo para esta pilhagem.
Defendemos o pleno cumprimento do Art. 26 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, com a realização da auditoria da dívida brasileira. Contrariamente ao Relatório Final da CPI da Dívida de maio de 2010, estamos convencidos de que a auditoria é uma exigência constitucional não implementada, que deve ser realizada a fim de revelar os aspectos que são notoriamente ilegais e ilegítimos da dívida, identificar os responsáveis por tais prejuízos, e instrumentar o País para reestruturar e renegociar o seu estoque e formas de pagamento, exigindo inclusive as reparações de que os fundos públicos fazem jus. Evidências constam do Voto em Separado apresentado pelo idealizador da CPI, deputado Ivan Valente,[6] com base em farta documentação oficial, e das assessorias oferecidas à CPI durante os seus trabalhos.
Propugnamos também que a auditoria anual independente e transparente das contas públicas seja instituída como prática corrente e generalizada nos três níveis de governo. Além de tornar transparente a gestão pública, este mecanismo coíbe práticas de corrupção ativa e passiva, tão comuns na cultura empresarial e político-partidária deste País.
Seria fundamental continuarmos a desvelar as implicações desta “parceria público-privada” que engendrou a Ditadura da Dívida, prejudicial à nação e aos direitos do povo e das cidadãs e cidadãos, e se consumou na aliança ditadura-grande capital privado. Esperamos que o governo tenha a vontade política de dar continuidade aos trabalhos da Comissão da Verdade, Memória e Justiça e das Clínicas do Testemunho, dando-lhes uma moldura jurídica permanente e recursos suficientes para realizar plenamente sua missão.
O Brasil precisa passar a limpo o seu passado e sanear o seu presente de toda forma de exploração, alienação e opressão. Um Brasil fraterno, solidário e feliz é possível.
ANEXOS


Anexo 2
Saiba quem são as 15 famílias mais ricas do Brasil:
NOTAS DE RODAPÉ
[1] O Federal Reserve Bank nos EUA funciona como Banco Central, mas não é um banco público! Portanto, atende prioritariamente os interesses privados do setor bancário e empresarial.
[2] No fim de 2014, a dívida pública total correspondia a cerca de R$ 25.300 per capita ou US$ 9.547 per capita. A dívida externa brasileira no fim de 2013 equivalia a US$ 2.400 per capita.
[3] Arruda, 1987, analisa a concentração e a centralização bancária no processo de gradual financeirização da economia brasileira, sobretudo a partir das duas décadas de ditadura empresarial-militar.
[4] A Resolução também sintonizava com a decisão dos governos do Norte de deslocar o crédito internacional das instituições governamentais e multilaterais para os bancos privados transnacionais. Ao criar vínculos com grupos financeiros transnacionais, por força da Resolução 63, os banqueiros privados brasileiros aumentavam seu acesso a recursos externos, o que ampliava sua competitividade e garantia maiores lucros. Foram os primeiros alentos do que veio a se tornar a maré neoliberal dos anos 80. Seu início ocorreu justamente com a liberalização do sistema creditício internacional, em favor dos grandes grupos financeiros e em prejuízo da soberania dos países que buscavam recursos para desenvolver suas economias e atender as necessidades básicas dos seus povos.
[5] É a lei de remessa de lucros, datada de 1962 e modificada diversas vezes desde o golpe militar de 1964.
[6] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Voto-em-separado.pdf
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Marco Antonio, ARRUDA, Marcos e FLORES, Percival, 1983, “Ditadura Econômica versus Democracia”, Ibase/Codecri, Rio de Janeiro.
ALMEIDA, J. S. G. (1994) “Crise econômica e reestruturação de empresas e bancos nos anos 80”, Tese de doutoramento. Campinas: IE/Unicamp.
ALVES, Silvio Rodrigues, 1987, Razões do Déficit, in Opção, Associação dos Funcionários do Banco Central, seção RJ, Ano 1, n. 3. Rio de Janeiro.
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