Precisamos construir outras compreensões sobre a realidade da vida antes que não caibamos mais nela
Cris Faustino, do Instituto Terramar (Fortaleza — CE)
Podemos começar com uma resposta direta à pergunta provocadora da roda de conversa, que provavelmente é acordo entre nós: não existe a possibilidade de construir um mundo melhor se não for rompendo com as estruturas patriarcais racistas, machistas e LGBTfóbicas1. Desconstruir essas estruturas é fundamental para gerar outras relações econômicas e outras racionalidades sobre as relações com a natureza e o meio ambiente.
Uma provocação neste debate é o desafio de refletir sobre como ser e agir — individual e coletivamente — de forma anticapitalista. Como ser anticapitalista nessa sociedade e nessa lógica de vida extremamente dependentes de energia, de tecnologias, cadeias e redes — que possibilitam a produção, a distribuição e a comercialização em larga escala? Não acreditamos no capitalismo como criador de condições dignas para a maior parte da população, mas a maioria de nós o aciona todos os dias. O tempo todo demandamos suas criações e modelos tecnológicos, seus mercados e modelos de relações entre as pessoas e de aceleração da vida cotidiana. Como vencer essa dependência?
Nas lutas sociais, evocamos o anticapitalismo, tentamos construir ideias e fortalecer práticas não capitalistas. Mesmo assim, me parece que, em algumas circunstâncias, uma radicalidade anticapitalista é mais fácil quando se tem acesso aos privilégios que o capitalismo produz. Noutras palavras: parece que é mais fácil para uma pessoa branca de classe média ou rica — que não vive a profundidade dos desprivilégios e os agudos efeitos das desigualdades no cotidiano — defender medidas radicais anticapitalistas para os mais desprivilegiados. Militantes de movimentos, intelectuais e estudiosos privilegiados pela classe e pela raça têm uma compreensão das questões, mas não carregam o fardo cotidiano de viver na contenção e na negociação permanente e desigual com e para viver no mundo.
Por isso, é preciso refletir sobre o que é esse anticapitalismo, suas abordagens e efeitos numa sociedade estruturalmente dependente, na qual aos mais empobrecidos urge acessar o mínimo, pois precisam de condições de dignidade mesmo na ordem capitalista, tais como educação, saúde, segurança pública, renda, e representatividade política. Mantendo a utopia de transformação da sociedade, o que reconhecemos efetivamente como princípio e necessidade de sobrevivência em diferentes realidades subjugadas ao capitalismo sem sucumbir a ele?
Considerando os entremeios dessas complexidades, que novas elaborações e pensamentos podemos formular sobre a economia? Nossa sociedade colonizada separou a economia das relações políticas e das relações socioculturais, como se fossem coisas descoladas.
Precisamos construir outras compreensões sobre a realidade da vida antes que não caibamos mais nela. Urge então revisitar o debate sobre as teorias economicistas, bem como compreendê-las em sua localização histórica. A economia, que é política, também influencia as relações socioculturais e, por vezes, nas múltiplas opressões, que reciprocamente as influenciam. Por isso, esses elementos não podem ser pensados de forma isolada.
Tendo em vista que a vida real é complexa, e crendo que é dela que deve brotar o novo, é importante reconhecer a existência de práticas não necessária ou explicitamente anticapitalistas, originadas da resistência e de pautas legítimas de sujeitos desprivilegiados. Seus exemplos incluem a representatividade negra e de mulheres nos mercados, na política e na gestão pública; as lutas das pessoas trans pelo básico direito à vida, pela inserção básica no mercado de trabalho e nas diferentes esferas da sociedade; a incidência antipatriarcal, antirracista e contra a LGBTfobia em empresas e corporações.
As trabalhadoras e os trabalhadores, sobretudo negras e negros, também encontram formas de sobrevivência no sistema capitalista. Às vezes um tabu, este debate é sobretudo um ponto de tensão entre as lutas negras e as lutas anticapitalistas. Situada numa permanente exclusão ou inclusão subordinada em relação ao capitalismo, a população negra precisa acionar o mercado e as institucionalidades capitalistas para construir equidade e reparação — o mesmo que ocorre com as mulheres. Precisamos aprofundar o que é o feminismo antirracista e entender o que é o feminismo negro, identificar quando a emancipação das mulheres tem a ver com autonomia financeira e com acesso ao mercado de trabalho, à mídia, ao poder institucional e a outras coisas produzidas pelo capitalismo. Esses processos as situam em condições extremamente desiguais e precarizadas, inclusive em relação às mulheres brancas.
Quando falamos em racismo, machismo e patriarcado, estamos também falando em economia. A formação das classes sociais está marcada pela desigualdade — entre quem tem e quem não tem poder. Tais opressões estão presentes no processo econômico do capitalismo, que se assenta sob a raça e o gênero, mobilizando opressões históricas para explorar as classes trabalhadoras, ditando e aprofundando as múltiplas “normas” racistas, patriarcais e misóginas para explorar o trabalho. A produção do lucro e da lucratividade é ao mesmo tempo a produção e apropriação das subjetividades e das relações sociais. A dominação econômica é ao mesmo tempo a dominação política, cultural e sexual.
Para pensarmos em outras economias, precisamos debater feminismo e raça. Por exemplo, historicamente se tem afirmado que as mulheres entraram no mercado de trabalho na segunda metade do século XX. Mas isso vale somente para as mulheres brancas de classe média, porque as mulheres negras sempre estiveram no mercado de trabalho, inclusive trabalhando e sendo exploradas pelas mulheres brancas. A experiência do trabalho — da produção econômica — para sustento da vida e do território é uma experiência que as mulheres negras sempre tiveram. Contudo, no construir-se da história, essas mulheres foram destituídas do poder e usufruto da riqueza produzida, enfrentando até hoje as heranças arraigadas dessa destituição.
As atuais reformas do governo golpista são, antes de tudo, medidas racistas e misóginas — que recrudescem o lugar de precarização da população negra, dos povos indígenas, das mulheres, dos LGBTs. Mas, mesmo nos períodos de “abundância” do capitalismo — na ausência de crises –, esses grupos continuam sendo prejudicados. Por exemplo, no decênio 2003–2013 houve melhorias nos indicadores sociais dos territórios rurais e urbanos — muito por conta das políticas sociais e de distribuição de renda, baseadas numa ideia de conciliação de classes. Contudo, aprofundaram-se o extermínio e o encarceramento da juventude negra e das mulheres negras nas periferias, as remoções para os megaeventos e o avanço de forças conservadoras, moralistas, beligerantes antidireitos, antidiversidade etc. No recente ciclo desenvolvimentista, os povos de comunidades tradicionais são as zonas de sacrifício dos grandes projetos capitalistas — enfrentando múltiplas violências e violações de direitos. Esses projetos e seus agentes são econômica, política e culturalmente dominantes e marcados pela branquitude e heteronormatividade.
Em uma população majoritariamente negra — mais de 50% da população brasileira –, nosso povo tem desde o período colonial necessitado reagir e sobreviver às margens, dos porões dos navios negreiros à senzala, ao quilombo, às periferias e às ruas das cidades. Desconsiderada na construção da nação, a população negra foi legada aos lugares e vidas precarizadas, criminalizadas, tornadas suspeitas e submetidas ao controle do Estado. Atualmente a economia ilegal — como o comércio varejista de drogas criminalizadas e o exercício do poder através da criminalidade — se torna o destino dos homens negros jovens e adultos. Inferiorizados pelo poder patriarcal branco, acabam exercendo o poder marginal atravessado pela violência, pela criminalização e pelo genocídio das comunidades negras nas cidades e, cada vez mais, no campo. Qual é a nossa possibilidade de discutir com essas pessoas?
Como vamos pensar e construir outras economias? Como a gente vai pensar em formas, jeitos de enfrentar os grandes concentradores de poder político e poder econômico? Será que isso é mesmo possível? Às vezes nos sentimos sem esperança, principalmente em relação às formas de fazer política, com incidência nas grandes mídias para formar o senso comum etc.
Como, para além das nossas pequenas e importantes resistências diárias, podemos enfrentar a macroeconomia? De que maneira nossas experiências afetam, ainda que minimamente, a estrutura capitalista? Quando se discute a economia, a mídia e os economistas são experts em esconder a inserção desse debate na vida cotidiana, a não ser em tempos de crises. Que forças nós temos acumulado para construir outro processo?
É necessário reconhecer que são as mulheres que inventam e reinventam economias não capitalistas, e que estão significativamente presentes em múltiplas experiências econômicas de resistência — intencional ou não — aos ditames do mercado. Não fazem isso para ter lucro, mas para garantir a sua sobrevivência e a dos seus. Isso é uma grande potência que precisa ser afirmada, para reconhecer as mulheres como sujeito e não objeto da economia. A maioria das participantes aqui é mulher. Se este evento fosse uma análise de conjuntura sobre a macroeconomia clássica, provavelmente teríamos uma mesa formada somente por homens brancos intelectuais, e os participantes teriam essas mesmas características. Mas como estamos falando de outras economias, de economia solidária, nós mulheres somos a maioria aqui e isso não é por acaso.
A autogestão, o autorreconhecimento e a auto-organização das mulheres nos territórios deveriam incentivar os homens, desde seu lugar, a se somarem às pautas feministas — são as mulheres quem cuidam das crianças, que ajudam as vizinhas a resolverem problemas, que cultivam a solidariedade. Os homens precisam se inspirar nesse exemplo, porque não se pode deixar toda essa responsabilidade sobre as mulheres. Os homens têm se colocado “de lado” no debate feminista, como se isso não fosse problema deles, ou como se as feministas fossem o problema. Mas superar o machismo está vinculado à transformação dos homens. Por isso, os homens precisam participar mais, de forma politizada e organizada, por exemplo, no enfrentamento ao “masculinismo” tóxico.
As relações socioculturais nos tornam gente. Mas a forma capitalista, ao mesmo tempo racista e misógina de nos relacionarmos tem afetado nossos territórios e nossa própria vida cotidiana. Nós, seres humanos, estamos sendo levados a adquirir valores contrários aos direitos do outro — causando violências de todas as formas. Esses valores são estratégicos ao funcionamento do sistema capitalista. Nosso desafio é então criar espaços mais solidários, de cuidado e afeto, capazes de construir novos ideais de felicidade.
Outra questão é como não tendermos à imposição de conceitos — forma de ler o mundo — sobre as práticas dos outros. Isso pode levar a interpretações universalistas que impõem verdades particulares sobre a diversidade — conduta que pode impedir a visibilidade de oportunidades revolucionárias e a identificação das forças das diversidades de sujeitos e práticas transformadoras das desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais.
1 LGBTfobia são todos os pensamentos e práticas hostis que afetam social, física e psicologicamente aqueles e aquelas que se relacionam sexo e afetivamente com outros e outras de maneira não cisheteronormativa.
Este artigo faz parte do livro “Outras Economias: alternativas ao capitalismo e ao atual modelo de desenvolvimento”, publicado pelo Instituto Pacs em 2018