O orgulho entre as dores de Maria dos Camelôs

Instituto Pacs
4 min readJul 4, 2016

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Maria de Lourdes carrega a mágoa de ter sido agredida enquanto trabalhava nas ruas, mas guarda o orgulho da profissão que escolheu para si. Foto: Aline Furtado

A manifestação dos camelôs já tinha terminado, numa tarde de quinta-feira, quando um novo coro foi puxado por Maria de Lourdes, 41, na escadaria da Câmara Municipal. “Vergonha! Vergonha! Prefeito sem-vergonha!”. Maria está à frente do Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), que desafia a truculência do governo municipal no Rio contra o direito ao trabalho de comerciantes informais.

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Maria é ambulante há 19 anos. Certo dia foi para a rua vender papel de presente em um balde às vésperas do Natal. Nunca mais saiu. “Eu via as pessoas indo para a rua e ganhando dinheiro. E eu trabalhando de empregada para alguém. Eu decidi sair dali, pegar minha mercadoria e trabalhar”, conta ela, que hoje vende roupas femininas nas ruas do Centro. Segundo pesquisa de 2010, o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 34% dos trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro trabalham sem registro formal.

A venda de papel de presente durou três dias. Maria almejava mais. Deixou o trabalho como empregada doméstica e começou a comprar mercadoria. Desde então só trabalha para si e dessa forma conseguiu criar três filhos. A quarta, Antônia, nasceu em abril de 2016. Kauê tinha quinze dias de vida quando um momento marcou a vida de Maria: a agressão da guarda municipal.

Sete dias depois do nascimento dele, Maria estava na rua, com o filho nos braços e ainda se recuperando de duas cirurgias: a cesariana e a laqueadura. “Como estava tendo muita repressão naquela época, minha mãe não deixou mais eu levar o Kauê. Aí eu continuei vindo sozinha”, explica ela. O conselho da mãe foi a sorte de Maria. Uma semana depois, ela enfrentou um “resguardo” forçado, ao ser agredida pela guarda municipal. “A guarda me pegou e me bateu muito. Eu fiquei muito machucada. Fui para o hospital e fiquei pensando um mês em casa: ‘A gente tem que fazer alguma coisa’”.

Na violência física e psicológica no período pós-parto, Maria dos Camelôs, como é conhecida, teve o nariz quebrado, o que a impossibilita de uma necessidade: usar óculos.

“Eu me recuperei, mas sempre fica a sequela. Fora as mágoas. Você apanhar porque está trabalhando é muito dolorido”, ressente-se.

Fotos: Aline Furtado

Foi nesse momento que viu na mobilização o caminho para a luta. Tão logo se recuperou, reuniu um grupo de ambulantes — muitos deles hoje não trabalham mais na rua — e procurou algumas pessoas no Partido dos Trabalhadores (PT). Era um ano de empolgação: o primeiro ano do mandato do presidente Lula. O PT indicou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) para o apoio. Nascia assim o Movimento Unido dos Camelôs, com “panfleto, carro de som, advogado”, conforme cita Maria.

Orgulho e Vergonha — “Quando eu tive o Kauê, eu estava separada e tinha que manter a minha casa. Quando eu trabalhava em casa de família, eu pagava o meu aluguel e, se eu pagasse alguém para ficar com meus filhos, eu ficava com fome. Foi aí que optei em trabalhar na rua e fazer meu salário”, conta Maria. A ambulante tem orgulho do que faz e passou esse ensinamento aos filhos. Na escola, eles não escondem que a mãe é, sim, camelô.

Maria é uma líder discreta. Numa manifestação em agosto de 2015, falou pouco durante o ato. Pediu a fala basicamente para denunciar a apreensão de mercadorias de um colega: panos de prato. Uma das principais reclamações dos camelôs é não ter as mercadorias devolvidas ao buscarem por elas nos depósitos da Prefeitura. Nem veículos, como triciclos, têm sido devolvidos. A abordagem dos guardas municipais geralmente é violenta, e a palavra mais ouvida pelos camelôs é “perdeu”, termo comum entre assaltantes ao abordar suas vítimas.

No fim do ato, Maria se junta a outras tantas mulheres camelôs na escadaria da Câmara Municipal para gritar, sem microfone, para os passantes entenderem bem o recado: “Eu sou camelô. Com muito orgulho. Com muito amor”. Os gritos imitam os versos cantados pela torcida brasileira nos estádios. O orgulho de trabalhadores e trabalhadoras se mescla à vergonha da “pátria de chuteiras”, país da Copa e das Olimpíadas, que joga para o canto quem busca tirar dali seu sustento — ou é simplesmente indesejado nas fotos dos turistas que virão ver os Jogos. Num dia ensolarado de inverno carioca, o sol se escondeu constrangido entre as nuvens no exato momento em que Maria cantava orgulhos e dores.

Fotos: Aline Furtado

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