Não é guerra. É massacre!
Pelo fim da militarização da vida. Basta de violência contra as mulheres
por Sandra Quintela/ Instituto Pacs
No fim de julho de 2017, 10 mil agentes — 8,5 mil das Forças Armadas, 620 da Força Nacional e 1.120 da Polícia Rodoviária Federal — chegaram de “surpresa” ao Rio de Janeiro para ocupar 22 pontos da cidade sob a justificativa de se combater a escalada dos índices de violência no Estado.
Além disso, incursões cotidianas têm sido realizadas nas comunidades de Manguinhos, Jacarezinho e Rocinha, para citar só algumas. Nas duas primeiras, em dez dias de operações, sete pessoas foram assassinadas em incursões policiais nas favelas. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, 381 escolas fecharam pelo menos um dia no ano letivo de 2017–15 delas no Jacarezinho — afetando pelo menos 131 mil estudantes.
Já imaginaram a vida dessas famílias? A vida dessas mulheres, mães, avós, nessa situação? No Brasil, quase 40% das famílias são chefiadas por mulheres. É possível imaginar a agonia cotidiana num ambiente de total insegurança?
Em nome de eventos breves e privados, como a Copa e as Olimpíadas, investimentos em justiça e paz sociais foram minguando, o que aprofundou o fosso de uma cidade partida. De 2013 para 2017, a população vivendo em situação de rua triplicou na cidade do Rio, segundo dados levantados pela própria Prefeitura. Investimentos em saneamento básico, creches, atendimento em saúde, lazer migraram para as assim chamadas Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Em 2017, o orçamento do Governo do Estado destinado à segurança pública atingiu R$12,1 bilhões, quase o dobro dos R$6,6 bilhões direcionados ao orçamento com saúde. Para os que mandam, que têm o poder de direcionar para onde vai o dinheiro público, é fácil definir como inimigo o seu próprio povo. Até quando?
O quadro de fragilidade institucional no país aprofundou ainda mais o quadro de insegurança em que vivem as populações das periferias urbanas. A perspectiva é que as contrarreformas trabalhista, previdenciária e política — além do congelamento de gastos sociais nos próximos 20 anos para atender a metas cada vez mais nefastas — agravem ainda mais esse quadro de fragilidade em que nos encontramos. Isso vai aprofundar ainda mais as desigualdades entre as classes sociais e os gêneros. As mulheres negras continuam sendo as mais pobres entre os/as pobres.
Do cotidiano da violência contra as mulheres
De janeiro a julho de 2017, 638 pessoas foram mortas em ações policiais, somando-se os dados mensais divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). Mais de 70% das vítimas são jovens negros.
A violência vitima as mulheres, principalmente as negras e periféricas. São elas as principais atingidas no estado por crimes como lesão corporal dolosa (63,8% das vítimas), violação de domicílio (69,4%), ameaças (65,4%) e até supressão de documento (59,5%). Isso sem mencionar a escalada de violência sexual. Foram 4.013 mulheres vítimas de estupro no Estado do Rio somente em 2016. Os dados são do ISP.
A situação é cada dia mais dolorosa para quem é reprimido e reprimida por fuzis, invasões domiciliares, escolas e unidades de saúde fechadas. A militarização do cotidiano da vida — vista por setores privilegiados como solução — precisa ser encarada como é de fato: um massacre para a população negra, favelada e pobre da cidade. Além dessas inúmeras formas de violência também há a violência policial contra mulheres, que é também muito invisibilizada.
A situação é cada dia mais dolorosa para quem é reprimido e reprimida por fuzis, invasões domiciliares, escolas e unidades de saúde fechadas. A militarização do cotidiano da vida — vista por setores privilegiados como solução — precisa ser encarada como é de fato: um massacre para a população negra, favelada e pobre da cidade. Além dessas inúmeras formas de violência também há a violência policial contra mulheres, que é também muito invisibilizada.
No Brasil, considerando-se apenas as mortes por ações policiais, 75 mulheres foram mortas pelo que se enquadrou como “intervenções legal ou operações de guerra”. Das vítimas, 39 eram mulheres pretas e pardas (52%). A estatística de mulheres negras mortas por policiais pode ser ainda maior, porque em 12 vítimas raça/cor aparecem como “ignorados”.
Lembremos o caso de Marisa Carvalho, moradora da Cidade de Deus. As testemunhas contam que os Policiais Militares queriam que o filho de 17 anos de Marisa assumisse que era traficante, porque desconfiaram dele por estar bem vestido. No meio da discussão, Marisa de Carvalho, que havia ido defender seu filho, recebeu uma coronhada de fuzil na cabeça. Os parentes da vítima dizem ainda que os policiais acusaram a diarista de “fazer drama”, após começar a passar mal com a pancada. Logo em seguida, seu filho morreu de aneurisma cerebral.
Os aplausos à chegada dos blindados no asfalto do Rio de Janeiro assustam tanto quando a naturalização das mortes diárias de inocentes. São vítimas escolhidas pelo seu local de moradia e cor da pele.
O Haiti é aqui!
Desde 2005 denunciamos que as políticas de militarização postas em prática no Haiti pela presença das tropas da ONU comandadas militarmente pelo Brasil ia se virar contra nós. O mecanismo já é conhecido: treinam nas favelas brasileiras, seguem para as missões no país caribenho e depois voltam “mais experientes” nas práticas de repressão e intimidação.
Nossa luta deve denunciar tudo isso, mas precisa ir mais além. Precisamos encarar a escalada de uma sociedade cada vez mais embrutecida pelo ódio, que perde a capacidade de se criar e recriar naquilo que chamamos de humanidade.
Precisamos enfrentar essa dura realidade de frente. Precisamos encontrar caminhos de justiça e respeito. Precisamos ser capazes de nos fortalecer e enfrentar o “apartheid” que se aprofunda no Rio.