Mulheres que resistem à militarização na América Latina: Yane Mendes e o cinema periférico na favela do Totó

Instituto Pacs
7 min readFeb 24, 2023

*Esta entrevista foi realizada por Gizele Martins, Ana Luisa Queiroz, Karoline Kina e Yasmin Bitencourt no dia 06/09/21.

“Mulheres que resistem à militarização na América Latina” é uma série que traz as histórias de mulheres que enfrentam o racismo, o machismo e a militarização da vida e dos seus territórios. A iniciativa é uma produção do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e da comunicadora comunitária mareense Gizele Martins. Desde 2007, essa parceria vem somando forças e sistematizando debates no campo das lutas contra os megaeventos e megaprojetos, denunciando a militarização da vida como uma das estruturas que sustentam o modelo de desenvolvimento que vivemos — pautado pela ampla exploração dos corpos e dos territórios. O objetivo desta série é colocar em foco a vida de mulheres que também enfrentam a militarização da vida. Aqui, elas contam suas trajetórias e de suas coletividades.

Na primeira entrevista da série, trazemos a história de vida e luta de Yane Mendes, 30 anos, cineasta periférica da favela do Totó, em Recife — Pernambuco. Coordenadora da Rede Tumulto, rede de articulação, mobilização e produção que atua no Totó e em outras comunidades, também é integrante da Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas (ANJF).

“Eu sou preta, favelada, sonhadora e cineasta periférica. Esse desenrolar da favela, é uma parada que me coloca nos lugares, tá ligado? Que me tira de vários, mas me coloca em vários lugares também”. — Yane Mendes

A favela do Totó, onde Yane cresceu, possui cerca de 2.500 habitantes (de acordo com o último censo) e está localizada na Região Política Administrativa 5, em Pernambuco, há cerca de 1 hora do centro de Recife. “O Totó é baseado na ladeira. E é aquela história de que a mãe deixa você ir até a ponta da barraca do seu Zé, porque seu Zé tá vendo, meu fio. Se você deixar um pão cair ou comer um pedaço no meio do caminho, sua mãe já sabe antes de você chegar em casa. Então, acho que eu não tinha esse entendimento do que era o meu bairro antes, tá ligado?”

Nesse contexto da periferia e do cuidado coletivo que Yane cresceu, criada por várias mãos e, principalmente, pelas mulheres lutadoras de sua família. Filha de empregada doméstica e de uma família que saiu do interior para a cidade em busca de uma vida melhor, a cineasta vê em sua mãe a sua maior motivação para seguir na luta pelos direitos da galera do Totó e de outras comunidades de Pernambuco. “Eu devo tudo à minha mãe. Ela é a minha maior inspiração”, disse. Foi através de um curso promovido por um projeto social que Yane, aos 16 anos, não só deu um pontapé nos seus corres com o audiovisual, como também passou a enxergar a importância da favela na sua vida. Entender o poder de uma câmera e a possibilidade de torná-la o seu ganha pão foi a virada de chave para que ela se encontrasse. “Pena que muitas das minas não tiveram essa oportunidade de se encontrar em algo assim. Por isso, o amor que eu carrego anda muito junto com a raiva, sabe?”

Para a cineasta, a romantização da favela parte principalmente da tentativa de se colocar o Totó dentro de uma “caixinha”, criando uma imagem errada do que é a favela e o favelado, invisibilizando a realidade sentida por quem vive ali, e é impactado, por exemplo, por questões como a militarização. Uma das faces estruturais desse modelo de desenvolvimento capitalista, racista e patriarcal que perpetua na sociedade, a militarização se reflete na produção de medo, terror, violência e controle sobre territórios, corpos e vidas. Um megaprojeto de desigualdade, apartheid, extermínio e genocídio — sobretudo da população negra, periférica e favelada — instrumentalizado pelo Estado que destina recursos vultuosos para a compra de armamentos, e não para a garantia de direitos nos territórios.

A Rede Tumulto surgiu no ano de 2019, idealizada por Yane, Fernanda Paixão e Rick Almeida, também artistas negros e moradores de favelas da cidade do Recife que atuam com comunicação, tecnologia e educação popular. Buscando criar diálogo entre coletivos e pessoas de diferentes favelas na união de forças e estratégias para tumultuar a cidade, a rede conta atualmente com 16 articuladores e funciona por meio de um conselho participativo, que contribuem no diálogo direto e na elaboração de soluções e ações efetivas para transformação a partir do enfrentamento. “Eu toco a Rede Tumulto também porque construo movimentos sociais na cidade. Acho que caminhar por esses três espaços: política partidária, política auto-organizada dos movimentos sociais e política do povo, me dá um diferencial, pois antes de eu fazer filme, fazer uma fala, eu tenho que pensar nos lugares em que transito”.

Estar em espaços políticos institucionalizados, enquanto mulher preta e favelada, também é um ato diário de resistência à militarização. A Assembleia Legislativa de Pernambuco, por exemplo, apesar de atualmente apresentar a maior bancada feminina da história do estado, é ainda composta majoritariamente por homens brancos, que em sua maioria reproduzem e reforçam o machismo e o racismo através de suas falas, decisões, atitudes e Projetos de Lei.

“Estar hoje em um espaço institucional, esse espaço político, também me faz ver a pá de soco que eu levo sem me deixar marca. A fala de um parlamentar policial dói tanto quanto a lapada que a gente toma na rua” — Yane Mendes

Atuar junto aos movimentos sociais e compartilhar a trajetória com outras mulheres negras que também são referência a fizeram entender que, mesmo que a militarização esteja entranhada na sociedade, e principalmente na favela, a rotina de medo e violência não pode ser normalizada. Para Yane, provocar essa reflexão para quem vive na pele as consequências da militarização é mais um desafio. Ao mesmo tempo, reagir às violências e dar visibilidade às violações de direitos humanos envolve também, na maioria das vezes, colocar a si mesma e as pessoas que ama em risco.

Ser a pessoa que fala da foto que tira, ou da foto que não consegue tirar exige, em algumas situações, o entendimento dos momentos em que também é preciso se calar. “Por mais que seja o lugar em que a gente tem que correr de polícia; ou que a gente às vezes não pode falar, temos que fechar o olho sim e tapar a boca, porque Yane muitas vezes tá na rua e quem fica em casa é minha família. Por isso, todos os dias me pergunto: Quem cuida da gente? Porque tem horas que a cabeça da gente ó, fervilhando e pá, e tem horas que a gente tá revoltada mesmo e bota uma câmera na cara, feito eu já botei, e grava vídeo e quando vê a parada tá numa proporção de 5 mil views, mas você também, meu fio, não vai mais tomar sua cervejinha de boas não. Porque você começa a olhar pra todo mundo, acha até que o cara do bar que você bebe todo dia tá te olhando diferente”, expõe.

Durante a conversa, outra questão também destacada pela cineasta foi a sua relação com as crianças e como a militarização impacta desde cedo a vida na favela. Como contou Yane, esse elo com a infância parte muito do entendimento de que a sua missão é fazer a luta seguir: “A criança da favela sabe o que é a militarização. Ela fica com medo da polícia, ela chama de “gato preto” e fala: — ‘tia, corre, o gato preto!’ Isso é muito pesado e a minha relação com as crianças é a de conseguir ouví-las e aprender com elas, e eu acho que esse é um dos maiores “hackeamentos” que eu consigo ter”.

A infância e a juventude são grupos prioritários de trabalho da Rede Tumulto. Durante os piores anos da pandemia do Covid-19, inclusive, o coletivo seguiu com as atividades de formação, além da arrecadação e distribuição de cestas básicas no Totó e em outras favelas de Pernambuco, mesmo com todas as dificuldades que surgiram com o isolamento social. “Em 2020, mesmo na pandemia, fazendo a entrega de cesta, a gente continuava fazendo a formação para crianças, porque era ano de eleição e a gente precisava conversar com aquelas crianças; aquelas crianças dizer na família delas que ela tem que cobrar do vereador, dos outros parlamentares que fossem estar entrando, que tinha que ter um plano sobre o sistema de saúde, um plano para que elas não passassem necessidade”.

Para ela, a pandemia provou, mais uma vez, que na favela é “nós por nós” e que é preciso não só criar as redes, mas seguir fortalecendo-as, principalmente diante de um contexto e uma realidade de abandono público, de militarização e violência cotidiana contra corpos e territórios. “A pandemia provou que a gente tem uma rede gigante e que não foi dada. Uma rede que é construída todo dia. Acredito ainda que não é só dar a sua doação e dizer ‘fiz meu papel!’; mas dizer: ‘quem são essas pessoas?’ e eu tenho muito orgulho de coordenar a Rede Tumulto, porque a gente tá preocupado com quem são as pessoas que a gente atende. E o que eu aprendi na pandemia foi utilizar melhor essa rede e compreender o lugar político que a gente tem”, finaliza a cineasta do Totó que hoje leva o seu conhecimento para todo o país.

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