Mulheres que resistem à militarização na América Latina: Camila Rodríguez e a luta e resistência das indígenas Muisca na Colômbia

Instituto Pacs
7 min readFeb 24, 2023

*Esta entrevista foi realizada por Gizele Martins, Karoline Kina e Yasmin Bitencourt no dia 22/10/21.

Nesta terceira e última entrevista da série “Mulheres que resistem à militarização na América Latina”, trazemos um pouco sobre a trajetória de Camila Rodríguez, que vive na comunidade da reserva indígena da Fonqueta, próxima a Piedra (ChíaCundinamarca) na Colômbia. Camila é indígena Muisca, mulher, mãe, filha, companheira e uma ferrenha defensora da vida e da luta contra as violações de direitos em seu território. Esta série de entrevistas é uma iniciativa do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e da comunicadora comunitária mareense Gizele Martins, onde o objetivo é colocar em foco a vida de mulheres que enfrentam a militarização seja na sua vida, ou no seu território de vida e luta.

Já no início da entrevista, Camila falou sobre os conflitos vivenciados pela população colombiana nos últimos anos. Segundo ela, este tem sido um período muito doloroso e desafiador, principalmente, para as mulheres: “Ninguém está oculto. Temos um conflito que se intensificou por mais de 60 anos e que não terminou, apesar de um processo de paz, há por trás disso interesses políticos estratégicos contra o narcotráfico, contra o tráfico de armas pequenas e brancas, tráfico de pessoas, sexual, além dos interesses extrativistas que estão permanentemente em nossos territórios com os múltiplos exércitos. E para ninguém é novidade que as mulheres e, ainda mais as mulheres racializadas, estão no último elo da corrente de poder”.

Assim como muitas mulheres colombianas, Camila já foi vítima de muitas destas violências, que seguem ainda impactando seu corpo e sua vida: “Eu senti a violência na pele. Também acompanhei como mataram nossas companheiras, as agrediram sexualmente. Temos presenciado processos de restituição de direitos territoriais e de proteção, e autoproteção de crianças indígenas e mulheres que foram sexualmente afetadas pelos exércitos militares legais da Colômbia e também pelos ilegais”, contou.

Diante desse contexto social, ela explica que os movimentos criaram suas próprias estratégias. “É preciso lutar contra um monstro, mas ao mesmo tempo não podemos sentir medo. E, para tentar se proteger, é preciso criar uma importante aliança entre redes. Na organização da qual faço parte, passamos por ameaças, por violências de todos os tipos, econômicas e políticas, não só para fora, com o Estado como instituição com exércitos legais e ilegais, mas também para dentro dos movimentos sociais”.

Criar estratégias de sobrevivência entre as mulheres que sofrem as inúmeras violações, sejam elas físicas, emocionais ou sexuais, é fundamental para que seus gritos sejam ecoados e que outras companheiras não sejam também vítimas. “Aqui o militarismo está cada vez mais normalizado. Ao lado de onde moro colocaram um batalhão, agora o povoado está cheio de militares. Isto torna nossas vidas e nossa luta cada vez mais difícil, por isso, tivemos que ter alguns processos de proteção psicossocial e espiritual”, contou Camila.

A vulnerabilidade na qual se encontram as defensoras indígenas que lutam e denunciam megaempreendimentos violadores de direitos também foi um ponto trazido por ela: “Aqui é pequeno e, por isso, somos facilmente encontrados, cada vez mais precisamos procurar nos defender porque somos mulheres e indígenas. A linha patriarcal homogeneizante sempre exerceu o poder em todas as suas formas. Tem sido realmente desafiador e difícil, mas buscamos forças sempre”.

“É preciso lutar contra um monstro, mas ao mesmo tempo não podemos sentir medo. E, para tentar se proteger, é preciso criar uma importante aliança entre redes.” — Camila Rodríguez

Conheça um pouco da história do povo Muisca

O povo Muisca é um dos povoados mais exterminados da Colômbia e que reside no centro do país, nos estados de Cundinamarca e Boyacá, locais onde a capital, Bogotá, foi fundada. “Para que os povos amazônicos do sul, os povos da Sierra Nevada do norte e os povos da periferia pudessem ser tão ricos e protegidos culturalmente, tínhamos que enfrentar toda a colônia, porque os espanhóis chegaram a este território por meio da corrida do ouro. Eles vieram aqui em busca da lenda do “El dourado” e, de fato, parte da cultura Muisca era gerar objetos de ourives, mas não eram em ouro puro, eram misturados com cobre e outros metais, depois banhados em ouro. Aqui houve um saqueamento muito grave, onde nos deram espelhos e levaram todo o ouro e esmeraldas, onde também estupraram as mulheres e cometeram um grande etnocídio”, explicou Camila.

Atualmente, o povo Muisca encontra-se diante de uma reestruturação e forte resistência cultural, com 5 reservas legalizadas: Cota, Chía (em que Camila reside), Sesquilé, Bosa e Suba Cabildo de Bosa, localizada em Bogotá. Há também diversos processos de autorreconhecimento em todo o estado de Boyacá e também na periferia de Usme de Soacha, além de um povoado em processo de recuperação de sua língua nativa — Muiscobun -, cuja característica é muito campestre e espiritual.

Segundo Camila, sua luta sempre partiu do movimento indígena, do antimilitarismo e do movimento das mulheres, porque o que a convoca é a defesa da vida e do território: “Criamos convergências e conhecimentos de ação territorial, por meio de uma organização intercultural de mulheres indígenas, na qual realizamos justamente processos sobre conflitos socioambientais contra o extrativismo, o antimilitarismo, além de também fazermos incidência na mídia legal. Tínhamos avançado com algumas escolas políticas de formação especialmente para mulheres indígenas no território, sempre trabalhamos a partir da autogestão e cooperação internacional, mas ampla.”

A luta contra os megaempreendimentos

No território do povo Muisca, os corpos de água que atravessam a fronteira CundiBonse, entre Cundinamarca e Boyacá, são de grande interesse das empresas e megaempreendimentos, que atacam e violam os direitos desse povo ancestral com frequência: “Agora travamos lutas com empresas de infraestrutura como a Amarilo. Tivemos que lutar até para impedir o Plano de Ordenamento Territorial (POT) de Chía, para que não avançassem. As comunidades não foram consultadas no planejamento desse manejo. Em um primeiro momento, fez-se uma espécie de diálogo, mas o documento que foi protocolado era completamente diferente do que foi pactuado com as comunidades, por isso, exigimos e agora nós detivemos o POT”, contou.

Estas disputas são frequentes, já que a região é de grande interesse imobiliário. Um território rico em água, que é habitado por uma parte do município localizado dentro de um território urbano, não tão cêntrico, mas que se trata de uma zona urbana como a de Chía: “Eles vieram com seus planos de infraestrutura para construir casas milionárias, com grandes piscinas e com esse tipo de planejamento. Mas a população local se auto organizou e detiveram o POT, parou o projeto de infraestrutura”, explicou Camila.

Com a luta da população local em defesa da terra e contra os megaempreendimentos, a militarização aumentou. Foi instalado um batalhão militar contra o povo, e agora, o município convive com a presença de soldados e de homens da sociedade civil que atuam como uma espécie de segurança privada, sob a mesma lógica do paramilitarismo, equipados com motos, capacetes, câmeras e rádios.

Em toda a Colômbia, esse cenário se repete historicamente. Um exemplo disso é a presença da mineração de ouro com a AngloGold Ashanti, entre Chocó e Risaralda, territórios ancestrais do povo Emberá Katio. O local tem mais de 50.000 hectares que fazem parte dessa comunidade indígena, dos quais 30.000 mil estão em processo de extração e exploração de ouro. Além disso, efetivamente o Andágueda (Rio Chocó), tem uma localização estratégica por estar em direção aos dois oceanos, Atlântico e Pacífico, rotas ideais para o narcotráfico. De acordo com Camila, a geografia biofísica é de uma selva localizada em uma serra, e que é vista como ideal para a retirada militar.

Esses empreendimentos impactam diretamente as comunidades indígenas dos territórios, que veem afetadas sua autonomia e soberania alimentar e territorial, além de sua própria governança. Camila trouxe ainda o exemplo da cordilheira Perijá, ao norte da reserva indígena Yukpa, onde está instalada a mineradora Drummond, da qual foram confirmados vínculos com paramilitares para o extermínio de lideranças sociais. “Isso faz parte de uma estratégia intercontinental que não só afeta a Colômbia, pois são lógicas neoliberais que percorrem todo o sul geopolítico da América Latina e o Caribe. Temos ainda aqui o projeto do porto de Buenaventura, que é instalado em um território absolutamente étnico, onde a maioria da população é afrodescendente e indígena. Esse porto está na entrada marítima da América Latina e na saída para o Cone Sul do Chile. Então, eu sinto que tudo pode ser explicado com um mapa, que claro, é um mapa da legalização de desapropriação. É muito claro e é dessa forma que esse modelo colonial nos deixou”, lamentou. Para a defensora, a militarização firma um papel muito claro de cuidar das empresas privadas e dos interesses econômicos, políticos e sociais das estruturas poder: “São pessoas, muitas vezes, do chamado “primeiro mundo”, ou gente que tem todo aceso à produção midiática de nossos países e que buscam suas próprias riquezas, independentemente da violência que tenha que ocorrer, porque também têm o poder de militarização e toda força armamentista. Do mesmo jeito que lutamos contra as armas, tem gente que decide se armar, mas eu acredito que caem na mesma militarização da vida que nos mata”, concluiu Camila.

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