Mulheres que resistem à militarização na América Latina: Onésima, mulher Mapuche, mostra a força e histórica luta pela terra de seu povo e traz o debate sobre o impacto da militarização na infância
*Esta entrevista foi realizada por Gizele Martins, Ana Luisa Queiroz e Yasmin Bitencourt no dia 23/09/21.
“Sou uma mulher terra. Atuo na defesa dos direitos humanos das crianças indígenas da região, principalmente, neste território que é vítima da violência estadual e policial, afetados pela militarização. O meu trabalho é e sempre foi dedicado a estes territórios onde vivenciam a violência de Estado. Este é o meu cenário de trabalho.”
É assim que Onésima Lienqueo, mulher Mapuche, defensora da infância e educadora intercultural na área de Psicoeducação, descreve o importante trabalho que faz no território Wallmapu em que mora. Ela é a segunda entrevistada da série “Mulheres que resistem à militarização na América Latina”, uma iniciativa do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e da comunicadora comunitária mareense Gizele Martins, onde o objetivo é colocar em foco a vida de mulheres que enfrentam a militarização da vida e de seus territórios.
Há seis anos ela fundou a Rede de Defesa da Criança Mapuche, uma organização que trabalha com crianças violadas pelo Estado do Chile. Nessa Rede, há um trabalho de investigações, denúncias e processos de apoio socioemocional, jurídico e social para meninos e meninas e, para as famílias que são vítimas da repressão policial e da militarização. Para Onésima, infelizmente, diante dos conflitos militarizados, do extrativismo e da violência, as vítimas silenciosas e silenciadas desse processo são sempre as crianças:
“Na história, a infância se tornou invisível. As crianças sempre foram silenciadas porque não são consideradas como pessoas. E como elas não podem adquirir direitos, nós as consideramos — socialmente — como menores. Ou seja, o fato de não serem adultos, não permite que elas falem ou se defendam, e isto ocorre perante a lei, ao Estado e à sociedade.” — Onésima Lienqueo
Segundo a educadora, estar junto às crianças e adolescentes nesse trabalho é vivenciar, ao mesmo tempo, a dor e a esperança da construção de um futuro melhor: “Tenho meninas e meninos que trabalham comigo na rádio, ou escrevendo, que têm 12, 15 anos e eles são meus colegas de trabalho. Eles têm os mesmos interesses e uma visão muito nítida do que querem, como querem e o que esperam deste mundo. É um processo lindo de trabalhar, mas também é doloroso porque os danos são muito fortes. Fato que é muito difícil explicar para uma criança o que é uma discriminação, principalmente, às crianças indígenas, crianças pobres e crianças negras. É muito difícil explicar a uma criança porque o outro te odeia por causa da sua cor, sua forma ou do lugar onde você mora, mas nosso trabalho e todo o processo é construído de forma conjunta”, explica. Por isso, Onésima afirma que este é um trabalho fundamental também porque é uma preparação de um futuro tanto para a própria criança, quanto para a sociedade: “Quando trabalhamos desde a infância, construímos um presente e um futuro. Não podemos apenas pensar em nós mesmos, porque amanhã são elas que farão novas caminhadas”.
Já em relação ao debate sobre os impactos da militarização na infância, de acordo com sua experiência, esta é uma violação que afeta as crianças em todos os aspectos da vida. “A militarização inclui impactos sociais, culturais, políticos e econômicos e que afetam, principalmente, crianças, porque elas conseguem quebrar uma sociedade. Quando a militarização ataca meninos e meninas, não está apenas quebrando uma população, mas está, em geral, quebrando suas famílias. Os impactos que a militarização gera no contexto do desenvolvimento infantil são irreversíveis tanto a nível psicológico e social, como a nível físico, assim como obesidade e desnutrição, em alguns casos… São muitos os efeitos cognitivos também que afetam a capacidade de aprendizagem. São nestes contextos militarizados que há ainda a evasão escolar, muita desescolarização e, também, alfabetização funcional, — que é quando as crianças conseguem adquirir algumas habilidades-, mas após o processo traumático de militarização, elas abandonam a escola. Portanto, o direito à educação, um direito garantido, é novamente violado”.
Ainda sobre o debate acerca dos impactos na infância, quando se fala em outros tipos de violações, como por exemplo o que conhecemos como conflitos mundiais, novamente as crianças e adolescentes são as que que mais sofrem implicações da violência: “O caminho que temos percorrido como pessoas, como humanos e como sociedades no mundo, tem sido resolver pequenas necessidades de meninos e meninas, mas de uma forma ainda assistencial. Fazemos isto porque consideramos que as crianças não têm capacidade de expressar o que querem, o que desejam e sentem. Ou seja, colocamos nossas ideias como adultos e decidimos por elas, pensamos por elas e criamos leis por elas”, expõe a educadora.
A luta história do povo Mapuche
A luta diária Mapuche não começou hoje. Mapuche é um povo que possui a maior população indígena do Chile e tem liderado processos de luta, primeiro contra a coroa espanhola, no processo da chamada “conquista” ou “descoberta” da América, e, também, no processo de luta com o Estado e com os governos do Chile. É um povo que tem lutado pela recuperação territorial: “Nós fomos expropriados, despojados de nosso território. A quantidade e extensão territorial onde vivíamos não incluía apenas o Chile, mas também uma parte da Argentina. E os dois Estados, através de duas campanhas, que foi a “Pacificação da Araucanía”, que se chamou aqui no Chile, e simultaneamente na Argentina foi chamada de “Campanha do Deserto”, foi onde o povo Mapuche foi majoritariamente despojado de seu território, assassinado. Houve um genocídio”, explica Onésima.
“O que o Ocidente chama de recursos naturais, foram explorados, nossa cultura e nossa língua foram destruídas. E, apesar disso, está em curso um processo de recuperação territorial. É um processo de um povo que está em constante luta contra o Estado chileno pela recuperação do território nacional Mapuche, pela recuperação dos direitos do povo e, principalmente, há também uma luta — que tem sido feita a partir de nós, desde o povo — que é a recuperação linguística, cultural, espiritual de nossos ancestrais.” — Onésima Lienqueo
Nesse histórico de luta pela terra e contra a militarização, as mulheres Mapuche têm sua marca. Para Onésima, ser mulher Mapuche é representar também essa história. “Representamos a luta pela defesa territorial, pela terra. O nome “Mapuche” tem um significado muito particular: a palavra “mapu” significa terra, na minha língua, e “che” significa povo. Então, somos “povo da terra”. E com esse nome, não podemos deixar de defender a terra em que vivemos, porque dela nascem o saber, a nossa cultura e a nossa espiritualidade. E a mulher Mapuche é quem transmite esse aprendizado, é quem, além das sementes, está contribuindo para a preservação da cultura, da terra, da natureza e principalmente da nossa língua”, afirma.
A resistência Mapuche na pandemia
Durante os piores anos da pandemia da Covid-19 (2020 e 2021), neste território que transpira luta e resistência comunitária, os serviços de transportes, que eram os facilitadores que possibilitavam que as pessoas pudessem se locomover para trabalhar, foram fechados. O estado chileno, mesmo diante de toda a crise, nada fez para que o acesso à renda e alimentação fossem assegurados a esse povo. Os acirramentos se deram também em relação a questão hídrica, já que o país enfrenta o grave problema da privatização da água².
“Houve uma campanha no Chile chamada “Lave as mãos!”. Mas como lavar as mãos se não tiver água no território? Esse é um histórico processo de desigualdade e discriminação. Mais uma vez, os direitos não foram garantidos para todos e todas. E, no Chile, trata-se sempre de reduzi a população chilena a um todo, ao dizer que “somos todos iguais”. Na verdade, os chilenos não reconhecem suas diferenças e suas identidades. E esse é o grave problema que o Estado do Chile tem e sempre terá. Eles precisam reconhecer que somos diferentes e que existe diversidade sim”.
O povo Mapuche é exemplo de resistência contra megaempreendimentos, contra a militarização e pelas formas tradicionais de vida aa América Latina. É fundamental que sigamos discutindo e trocando saberes sobre lutas e resistências para internacionalizar nossas vozes contra aqueles que fazem de nós grandes laboratórios e mãos de obras exploradas.
² Leia também a entrevista com Francisca Fernández, defensora chilena do MAT (Movimiento por el Água y los Territorios), realizada no âmbito da Campanha Mulheres Territórios de luta. http://pacs.org.br/noticia/mulheresterritoriosdeluta-a-luta-feminista-socioambiental-e-ancestralcontra-o-neoliberalismo-no-chile/