Massa Crítica: Já é 2021 em alguns países da América Latina!
O ano que começou com a democracia estadunidense virando meme mundial já é sentido em alguns países do continente latino-americano. Mas enquanto uns iniciam reformas econômicas ou já possuem planos de vacinação contra a covid-19, outros seguem estagnados em 2020 (ou nem isso!).
A América Latina, que concentrou cerca de 1/3 das mortes por coronavírus no mundo em 2020, é a região mais impactada economicamente pela pandemia. A altíssima desigualdade social e concentração de renda nesses países empurraram ainda mais a população para a pobreza e vulneráveis a diversas violências, inclusive às praticadas pelo próprio Estado, além da maior exposição ao vírus.
As expectativas são pessimistas em relação à economia dos países latino-americanos em 2021, onde diversos personagens têm influência. Cuba, Venezuela e México, por exemplo, aguardam pelo novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com a esperança de que ele possa suspender sanções contra esses países. Além disso, a guinada no comando da presidência estadunidense representa uma redefinição geopolítica, com novos acordos e “parceiros”. Aliados de Trump, como a estratégica Colômbia e o governo subserviente do Brasil devem ser os primeiros a sentir esse impacto na relação.
Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) também seguem ditando as regras do jogo. Com a faca no pescoço, os países continuam comprometendo a maior parte do orçamento público com pagamento às instituições financeiras. O caso da Argentina é o mais emblemático, uma potência no continente, mas que não consegue realizar grandes manobras econômicas e implementação de programas sociais devido a sucessivos acordos feitos com o FMI, resultado da política neoliberal que quebrou o país no início do século XXI e que até hoje pesa nas contas dos argentinos e argentinas.
Incertezas políticas internas, com golpes e perseguições a adversários, também atrapalham o crescimento econômico, a exemplo do que vem ocorrendo em países da América Central e nos sul-americanos Equador, Venezuela e Peru.
Outro fator decisivo é a pandemia. Enquanto que a América Latina presencia uma segunda onda, com aumento dos casos de coronavírus, governos entram na corrida pela vacina. Além de significar a defesa da saúde pública, quanto mais rápido um país conseguir controlar a contaminação do vírus, mais rápido se iniciará sua retomada econômica.
Argentina, Chile, Costa Rica e México foram os primeiros da América Latina a iniciarem o programa de vacinação contra a covid-19, ainda em 2020. No entanto, muitos países seguem sem apresentar um plano de imunização e estimativas indicam que boa parte da população só começará a ser vacinada a partir de março e sem esperanças de conclusão em 2021.
Já no Brasil, sobra cloroquina. E falta seringa, respiradores e vacina. Com mais de 200 mil mortos pela covid, o país segue comandado por um presidente negacionista e genocida que age para provocar ainda mais mortes. Em janeiro de 2021, o mundo presenciou imagens e relatos revoltantes vindos de Manaus (AM). Mesmo ciente do risco de colapso na Saúde, o governo federal nada fez para impedir as mortes por asfixia e entregou a população à própria sorte na luta por cilindros de oxigênio.
Com o início das vacinações nos estados, o presidente não só não comemorou, como lamentou “Apesar da vacina… a Anvisa aprovou e não tem o que discutir”. Como se não bastasse, o Brasil é tratado com descaso internacionalmente. A fatura pela diplomacia de subserviência aos Estados Unidos, adotada pelo governo brasileiro, chegou. Após se afastar dos BRICS, o país vem pagando um preço caro, ficando para trás na fila de vacinação, já que boa parte das vacinas e dos insumos vêm justamente da Índia e China, que agora tratam o Brasil como um país irrelevante.
Enquanto isso, instigados pelo presidente, muita gente segue numa cruzada contra as vacinas que, de acordo com o grupo de whatsapp do “tio bolsonarista”, podem ser usadas para instalar um chip controlado pelo Partido Comunista Chinês e que alteram o DNA da pessoa, além de serem fabricadas com células de fetos abortados e com a enzima “luciferase”, que, como o nome já sugere, tem origem no satanás
Ano novo na economia
Diante de uma recessão global, acentuada pela pandemia, alguns governos aproveitaram para aprovar mudanças em sua economia. A mudança mais significativa aconteceu em Cuba. Em 1º de janeiro, ao comemorar 62 anos de Revolução, deu início ao “Dia Zero” da nova política econômica cubana. A unificação da moeda (com extinção do C.U.C.) e maior abertura ao setor privado promete uma turbulência na vida dos que vivem na ilha.
Salários e pensões da população cubana irão aumentar. Junto a isso, redução dos subsídios para energia e alimentação, por exemplo. Se a conta vai fechar no final do mês, ninguém garante. As medidas são acompanhadas por promessas de reestruturação das estatais e maior diversificação da sua frágil economia, que nos últimos anos penou na mão de Trump. Faltando poucas semanas para o fim do seu mandato, o ex-presidente estadunidense ainda assinava sanções que boicotavam diretamente as transações econômicas com a ilha atualmente comandada por Miguel Díaz-Canel.
Na Costa Rica, a tensão é sobre o acordo que está sendo firmado com FMI. A tentativa de endividamento em cerca de 2 bilhões de dólares fez o país parar em outubro de 2020, numa série de manifestações. Se aprovado, o acordo implementará uma agenda neoliberal, com redução do serviço público e aumento da arrecadação para pagamento da dívida.
No caminho oposto, o presidente boliviano Luis Arce promulgou a lei que taxa grandes fortunas. Mais especificamente, cria imposto sobre as 152 pessoas mais ricas do país “para a redistribuição de riqueza na Bolívia” — twittou Arce. Sua eleição, aliás, foi a de maior peso simbólico na América do Sul em 2020. Nas urnas, bolivianos rechaçaram o golpe que tirou Evo Morales do governo e optaram por eleger seu sucessor.
Ondas opostas na bacia da Plata
Outro país a taxar grandes fortunas foi a Argentina, que presenciou em 2020 o primeiro ano após a “volta da esquerda” ao governo. O fracasso da política neoliberal de Macri foi um dos principais responsáveis pela sua derrota eleitoral para Alberto Fernández e sua vice Cristina Kirchner. Além de tentar renegociar a dívida do país com o FMI e Banco Mundial, o novo governo argentino aproveitou o ano para emplacar demandas históricas do movimento social.
Dando mais um passo, a Argentina legalizou o auto cultivo da maconha para fins medicinais. Mas o acontecimento que irradiou o continente foi a Maré Verde, movimento formado por feministas de diversas gerações e que conquistou uma vitória secular: a descriminalização do aborto. O país, que em 2020 chorou as mortes do cartunista Quino e do imortal Maradona, terminou o ano protagonizando imagens emocionantes de mulheres nas ruas comemorando a aprovação histórica da lei.
Já no pequeno país vizinho, a maré é oposta. A coalizão de direita que governa o Uruguai do presidente Lacalle Pou se confirmou vitoriosa nas eleições governamentais, ganhando em 16 dos 19 estados. Antes, o governo já havia conquistado outra vitória: aprovação da LUC — Lei de Urgente Consideração. A nova legislação beneficia civis e militares que alegarem “legítima defesa” em assassinatos cometidos. Outros pontos da lei restringiram direitos a greves e manifestações. Sem sucesso, diversos protestos tomaram as ruas, sobretudo de Montevidéu, para tentar impedir a aprovação da LUC.
2020 também foi o ano em que os dois últimos presidentes uruguaios saíram de cena. Tabaré Vazquez faleceu em decorrência de um câncer. E Pepe Mujica renunciou ao cargo de senador. Em seu discurso de despedida, o ex-presidente iniciou agradecendo aos funcionários que durante 26 anos lhe “apoiaram na Casa” e finalizou aconselhando aos jovens: “Triunfar na vida não é ganhar. Triunfar na vida é se levantar e começar de novo cada vez que se cai”.
Os anos que ainda não terminaram
A cordilheira chilena de revoltas populares que entraram em erupção em 2019 seguiu com suas larvas de fogo avançando por 2020 e só deve se petrificar em 2022, com a votação da nova constituinte. Até lá, chilenos e chilenas seguem nas ruas se mobilizando em torno da eleição de abril de 2021, que irá eleger os 155 constituintes responsáveis por escrever a nova Constituição chilena — a principal vitória das manifestações e que promete enterrar a Constituição neoliberal da era Pinochet. O Chile também entra para a história por ter aprovado a paridade de gênero na assembleia constituinte — é a primeira vez que as nações de todo o mundo irão presenciar uma Constituição escrita por 50% de mulheres.
Por outro lado, ainda é 2018 no Peru, quando a Lava Jato derrubou o presidente Pedro Pablo Kuczynski (PPK). Desde então, a política peruana virou uma novela mexicana inspirada no Brasil. Keiko Fujimori, filha do ditador Alberto Fujimori (que cumpre pena de prisão), e que foi presa preventivamente por mais de um ano, já foi solta e anunciou que tentará a presidência. Os ex-presidentes PPK, Humala e Alejandro Toledo também foram condenados à prisão, enquanto que Alan García se suicidou antes de ser preso.
Diante desse cenário, o último mandatário peruano, Martín Vizcarra, duelou com o Congresso por dois anos, até ser finalmente derrubado no final de 2020. Em reação ao golpe, diversas manifestações eclodiram no país e foram violentamente reprimidas pela polícia. O resultado: dois manifestantes assassinados, renúncia do presidente interino e promessa de eleições para abril de 2021.
Já na Venezuela ainda é 2014, ano de início da recessão econômica no país de luto pela morte de Hugo Chávez e que acompanhava a queda nos preços dos barris de petróleo e ascensão de Maduro à presidência. Em 2021, o país assolado por governo e oposição destrutivos, não possui boas expectativas para reverter o cenário de pobreza, escassez e desemprego que já forçou mais de 4 milhões de venezuelanos a saírem do país.
De toda a América Latina, a Venezuela foi a que teve maior queda econômica em 2020, resultado da interminável crise política interna, dos impactos da pandemia e das sanções impostas pelos Estados Unidos desde 2015. O recorde de abstenção nas eleições legislativas, boicotadas pela oposição, constrangeu o próprio governo em um sinal claro de que ninguém saiu vitorioso.
Terra em Transe
Crises políticas em meio à pandemia têm resultado em incertezas para diversos países latino-americanos. Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega, reconhecido pelo autoritarismo, ficou um mês sem aparecer publicamente no início da pandemia. Quando apareceu, minimizou o vírus. Hoje, o país acompanha o crescimento de casos de coronavírus e denúncias de subnotificação, enquanto que o presidente negacionista tem conseguido aprovar leis para perseguir adversários políticos.
Por situação semelhante tem passado o Equador, presidido por Lenín Moreno. Enquanto operava pela condenação do ex-presidente Rafael Correa, lhe tirando da corrida eleitoral de 2021, Moreno era criticado pela negligência durante a pandemia. Imagens que rodaram o mundo mostravam a situação em Guayaquil, onde o colapso funerário obrigou as pessoas a abandonarem cadáveres nas calçadas. O governo também tem sido questionado por medidas autoritárias sob justificativa de combate ao coronavírus e já chegou a ter um decreto de Estado de Sítio derrubado pela Justiça.
Na Guatemala, manifestantes que pedem a renúncia do presidente Alejandro Giammatteie chegaram a incendiar o Congresso no final de 2020. Com 60% da população vivendo na pobreza, os efeitos econômicos provocados pela pandemia também serviram de estopim para a revolta popular.
Na Colômbia, uma onda de protestos denunciou a violência policial, em manifestações que foram brutalmente reprimidas, resultando em pelo menos oito civis mortos e centenas de feridos. O país também viu seu ex-presidente, Álvaro Uribe, ser condenado à prisão por envolvimento com milícias. No Paraguai, o ex-presidente Horacio Cartes também teve pedido de prisão decretado por seu envolvimento com o narcotráfico.
Já no México, o Congresso aprovou a legalização da maconha, enquanto que o movimento feminista segue pressionando o presidente Obrador pela aprovação da descriminalização do aborto e por políticas de enfrentamento à violência contra a mulher que, em 2020, teve 888 feminicídios entre janeiro e novembro, de acordo com dados oficiais.
“América Latina: um pueblo sin pernas, pero que camina”
Durante a pandemia, as violações de direitos humanos continuaram em todo o continente, atingindo sobretudo os povos tradicionais. Dos Mapuche, que sofreram com invasões de terra pelo governo chileno e prisões autoritárias de suas lideranças, até os habitantes da região de Chocó na costa afrocolombiana, que historicamente sofre com o racismo ambiental praticado pelo Estado colombiano.
No Brasil não foi diferente. E justamente dos povos mais atingidos é que vieram os exemplos de solidariedade em rede e também de resistência e denúncia. Enquanto o país enfrenta sua distopia, são as populações negras e indígenas que apontam para o caminho da luz. Principais vítimas da bala, da fome e do vírus, elas protagonizaram as principais manifestações em 2020. O direito de não ser assassinado pela polícia; programas de combate ao empobrecimento da população; e medidas para conter a pandemia foram reivindicações que alcançaram fortemente o debate nacional. Mas ao ter que reivindicar o óbvio, o país evidencia o tamanho do buraco em que se encontra.
Como visto, enquanto alguns países latino-americanos pisam em 2021 buscando vacina, reformas econômicas, direitos sociais, Constituição democrática, mudanças na política de segurança pública, proteção aos povos e territórios tradicionais, liberdade às mulheres e redução das desigualdades, outros países seguem em marcha rumo à Idade Média. Felizmente, apesar dos presidentes, a resistência latino-americana nunca cessou e certamente continuará levando pessoas e movimentos sociais às redes e às ruas.
Autor: Alex Pegna Hercog — comunicador social e assessor de Comunicação do Instituto PACS.