Financeirização da terra: campo-cidade hoje e o conceito de bem viver

Instituto Pacs
11 min readJun 27, 2019

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Karina Kato, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Gostaria de trazer dois eixos para a reflexão sobre as relações entre campo e cidade: (1) O que é o rural e como ele aparece nas definições estatísticas? Vivenciamos o fim do rural? (2) Quais os processos contemporâneos que trazem novas formas de conexão do rural com o urbano e promovem a crescente mercantilização da terra e da natureza? E quais os desafios que estão postos para o rural no futuro próximo?

Para pensar o rural e sua incorporação por políticas públicas no Brasil, precisamos antes de tudo definir o que é este rural a que estamos nos referindo. O rural deve ser definido sempre com relação ao processo histórico do desenvolvimento capitalista; ele é historicamente datado. À medida que o capitalismo avança, o rural vai adquirindo novas roupagens, novas características. Em tempos recentes, a definição do rural passou a ser crescentemente disputada. Movimentos sociais buscam, de diferentes maneiras, ampliar a definição de rural para além do rural produtivista, agropecuário. Contrapõem a diversidade do rural como espaço de vida, de pertencimento e de construção de novas formas de relação homem-natureza à figura de um rural produtivista e setorial, local de produção.

Em termos históricos, nossa sociedade tem bases agrícolas. Com a industrialização brasileira, a partir da substituição de importações (1930–1940), temos uma mudança significativa nessa dinâmica. O rural, que até então era definido como a área de concentração da agricultura, acaba subordinado à indústria e ao projeto de industrialização: como fornecedor de matérias-primas, gerador de divisas, provedor de alimentos e garantidor da disponibilidade de mão de obra nas cidades. A agricultura passa a ser valorizada a partir de um recorte produtivo e agrícola, por sua importância para o desenvolvimento industrial nas cidades. O rural está, portanto, ligado de forma pejorativa ao atraso. O rural tende ao desaparecimento com a modernização e a industrialização.

É preciso lembrar que a definição de rural não é neutra. Ela determina os horizontes para se pensar o rural, determina sua importância na sociedade, define as políticas públicas que lhe serão direcionadas e o próprio caminho do desenvolvimento. A importância e o lugar do rural estão relacionados a seu papel na sociedade e seu lugar no futuro que queremos construir. Na lógica do desenvolvimento capitalista, o atributo do rural é ser produtivista, descolando-se de um lugar de vida para ser um lugar apenas de produção. Esse rural hegemônico, não raro, é um ambiente sem gente e de produção, que, na medida em que se “desenvolve”, avança e anula outras formas de ruralidade.

No Brasil, se formos pensar numa trajetória de longo prazo, até os anos 1980 isso foi muito marcante, tendo a política de créditos como uma estratégia central impulsionadora da modernização da agricultura e da crescente integração agricultura-indústria. A financeirização resulta desse processo, que, a partir do pacote tecnológico da Revolução Verde e do crédito, buscava modernizar a agricultura e fortalecer a monocultura exportadora. Trata-se, como defendem as leituras de cunho marxista, de um processo contínuo de aumento da fenda metabólica, de aumento da distância da relação do homem com a natureza e de aproximação da agricultura com os processos industriais. Cada vez mais, as tecnologias e os insumos são usados para ampliar o controle sobre a produção e contornar os processos naturais aos quais a agricultura está sujeita.

Durante toda a década de 1980, nossa economia passou por um período de ajuste estrutural, com a redução do Estado e a mudança das políticas públicas voltadas para a agricultura, diminuindo o crédito. Entretanto, logo as políticas de ajuste estrutural e a necessidade de equilibrar nossa balança comercial deficitária colocaram a agricultura de larga escala — que hoje conhecemos como o agronegócio — como gerador de divisas e “grande salvador” do balanço de pagamentos. Alguns autores chamam a atenção para o fato de que a dívida é uma estratégia disciplinadora, preparando o contexto para a ampliação dos mercados e o avanço da financeirização da terra. É a economia do agronegócio, que resulta em seu fortalecimento político e econômico.

Contudo, no processo de redemocratização do final da década de 1980, movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil passaram crescentemente a ser organizar na disputa por novas ruralidades, por novas formas de existir e de olhar para o rural. As discussões em torno da Constituição Federal de 1988 foram particularmente importantes para fortalecer ideias como a segurança alimentar, o direito de povos originários, a reforma agrária, e a função social da propriedade. Ainda que as estatísticas oficiais continuem a quantificar o rural como resíduo, as políticas públicas vão apropriando diferentes formas de ruralidade.

O termo ruralidade, em essência, corresponde às formas diferenciadas de relação com a terra e com os recursos naturais, de produção do espaço, de constituição de laços sociais e culturais que se desenrolam no meio rural.

Logo, não se pode falar de um rural, mas de muitos rurais. São construções sociais, econômicas, culturais que dão forma aos territórios rurais e que variam enormemente de acordo com o contexto no qual se desenrolam. O rural como um lugar de produção, mas principalmente como um lugar de vida.

O rural, portanto, não se resume a uma lógica produtiva e setorial, mas revela um leque diversificado de relações com a natureza e com o tecido social, diferente do urbano. Toda essa reflexão amadurece e se fortalece ao longo da década de 1990, influenciando as ações do Estado, que por sua vez se convertem em políticas públicas que passam a fortalecer outros rurais. A Via Campesina, por exemplo, é uma protagonista nessa luta pela valorização de novos tipos de ruralidade, pautados na soberania alimentar dos povos.

A leitura hegemônica, simplista, associa o rural à agricultura, considera-o algo residual e prega que sua tendência é desaparecer. Grande parte das estatísticas atuais se apressam em mostrar que desde a década de 1970 a população urbana vem crescendo e hoje é significativamente maior que a população rural. Mas todos esses cálculos dependem da forma que se mensura e dos indicadores usados para mensurar o meio rural. Isso está atrelado a uma forma de interpretação que não está descolada da ideologia da modernização e da industrialização. Estudos procuram problematizar a forma de mensurar e denunciar os problemas do rural definido como aquilo que não é urbano. Normalmente, o urbano é classificado pela concentração de população e/ou por definições administrativas que nada têm que ver com suas características. Essa visão reduz o rural à produção agropecuária e ao que não é cidade.

Um estudo recente, por exemplo, questiona as definições oficiais em diversos países, normalmente de cunho meramente administrativo. Os autores procuram ampliar a forma de identificação do rural e encontrar indicadores compatíveis com suas características: a combinação de menores densidades e maiores distâncias com relação aos centros urbanos. Ferranti et al. (2005) evidencia que a população rural, que corresponde a 24% da população nas estatísticas oficiais, passaria a 42% se considerássemos outros elementos na sua caracterização. Ou seja, quase dobraria a população rural.

No Brasil, a definição do rural é dada pelo aspecto administrativo, ou seja, é uma definição legal e residual: aquilo que não é urbano. No governo de Getúlio Vargas (1930–1945), houve uma tentativa de regulamentação da divisão territorial. Com a criação do Decreto-Lei 311, de 02 de março de 1938, o Estado passou a reconhecer as cidades como meio urbano, sendo rural o que sobrava.

A coleta de impostos, adicionalmente, desempenhou um papel importante. Os municípios passaram a ser responsáveis pelo imposto predial e territorial urbano (IPTU), e o Governo Federal pelo imposto territorial rural (ITR). Isso incentivou os governos locais a reduzir o rural e ampliar as áreas urbanas, ainda que mantivessem pouca relação com a urbanização ou com um ambiente urbano, para aumentar sua base de arrecadação.

Para auxiliar na divisão, alguns dispositivos foram criados: o primeiro foi associar o urbano a qualquer infraestrutura — mesmo um meio-fio. Isso acentuou a visão do rural como o atraso e a ausência de infraestrutura. Tudo isso acabou maquiando e reduzindo a importância da área rural e da população rural nas estatísticas, as quais justificam a repartição de recursos e a elaboração de políticas públicas.

Recentemente essas visões residuais do rural vêm sendo repensadas. A figura 2 mostra as diferentes formas de olhar para o rural em diferentes organizações internacionais: a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (Food and Agriculture Organization of the United Nations — FAO) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico — OCDE). Logo, a conceituação de rural e ruralidade vem ganhando relevância no Brasil e no contexto internacional, consolidando diferentes tipologias e conceitos de rural, que procuram exaltar sua diversidade e promover sua revalorização na sociedade.

Visto isso, ao contrário do que as estatísticas oficiais costumam dizer, podemos extrair que o rural está longe de desaparecer, que é diversificado e que segue importante em nossa sociedade. Não há um tipo de rural, mas diferentes formas de rural. Essa diversidade é enriquecedora.

Aqui corto para processos mais recentes que incidem e tencionam o rural e sua diversidade. A meu ver, esses processos condicionarão o rural no futuro próximo.

A partir dos anos 2000, com a valorização do preço das commodities e com a consolidação de modelos neoextrativistas na América Latina, observamos um fortalecimento e uma maior valorização do rural produtivista, pautado na produção agropecuária e, em particular, no agronegócio. Todos esses processos culminam na valorização da terra, no crescimento acelerado dos negócios com a terra, na maior concentração da propriedade, na privatização de bens comuns, no avanço das corporações no meio rural.

Na literatura contemporânea, diversos autores têm usado o termo land grabbing, water grabbing ou green grabbing, para se referir a este processo recente de valorização da terra, da água e dos recursos naturais.

A partir dos anos 2000 e diante de um período de crise financeira, ambiental, energética e alimentar do sistema capitalista, observamos uma crescente disputa e corrida em torno de recursos naturais, colocando a terra no centro da agenda dos Estados, das corporações (grupos econômicos) e do sistema financeiro.

Essas disputas ameaçam e pressionam ruralidades alternativas, pautadas por novas formas de relação homem-natureza. Atores diversificados, que até então não eram ligados ao mundo rural — como fundos soberanos, fundos de pensão, empresas de energia — avançam sobre o meio. É nesse cenário, que inclui uma crescente financeirização do mundo, que podemos compreender fenômenos contemporâneos que permitem, por exemplo, que professores universitários de Nova Iorque, nos EUA, comprem e invistam em terras do Maranhão. Isso tem como contrapartida a mercantilização da terra e de recursos, a expulsão de diversas famílias de seus territórios e uma reconcentração da terra no Brasil.

A financeirização da agricultura transforma a terra num ativo e a agricultura numa atividade controlada pela lógica econômica e financeira. A terra se torna mercadoria, a agricultura meramente um investimento. A ideia de culturas flexíveis — flex crops, como soja e cana — é um exemplo de acentuação desses fenômenos. São culturas rapidamente direcionadas para diversos mercados e fins, que se adaptam aos planos e objetivos de valorização financeira. A soja, por exemplo, é rapidamente direcionada para a produção de ração, de agrocombustíveis (biodiesel) e de óleo, por exemplo, o que garante lucratividade e facilidade de acessar um ou outro mercado.

Com isso, a agricultura passa a se encaixar de forma mais automática às equações de lucros das empresas. Soma-se a isso o debate sobre a infraestrutura e a logística para escoamento das mercadorias, que produz novas formas de conexão do rural com o urbano, além de fomentar a abertura de novas fronteiras agrícolas ou minerais. A logística abre novas áreas de território para a produção, torna a terra mais atrativa, facilita o escoamento. Ainda que seja alardeada, em muitos lugares, como a chegada do “desenvolvimento” para a população, essas infraestruturas em muitos lugares têm operado como um fator que altera a lógica do território, cujo funcionamento passa a girar exclusivamente em torno do deslocamento de commodities e das dinâmicas dos mercados internacionais.

As estatísticas recentes e a espacialização da cultura de soja e de cana-de-açúcar nos dão um exemplo de como essas transformações se acumulam e se aceleram. O agronegócio — um setor bastante importante para o capitalismo brasileiro — representa bem as novas formas de conexão entre rural e urbano. Ele tem sido um vetor importante de fortalecimento de um rural produtivista e sem gente, assim como de um meio urbano cortado por estruturas logísticas e inchado por pessoas expulsas do campo. As figuras abaixo revelam, por exemplo, o avanço da produção canavieira no Centro-Oeste do Brasil no período de 1980 a 2009 e da produção de soja no período de 1973 a 2014 do Sul ao Norte e Nordeste do País — região que hoje chamamos de Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

Expansão da cana-de-açúcar no Brasil (em hectares)

Fonte: GEMAP, CONAB e PAM-IBGE (2016).

Expansão da cultura da soja no Brasil (em hectares)

Fonte: GEMAP, CONAB e PAM-IBGE (2016)

Pelas figuras, vemos como essa agricultura empresarial, monocultora e produtivista avança no território, tensionando e empurrando outras formas de ruralidade. Quais objetivos impulsionam essa corrida por terra? São várias as explicações. A produção de grãos e de cana para o atendimento da indústria e para exportação é uma das principais, e vem ganhando força nos tempos recentes. Observamos uma primarização de nossa pauta exportadora: concentração de nossas exportações em produtos primários. Mas outras razões se somam: o crescimento da preocupação ambiental, a busca por áreas verdes e pela conservação da biodiversidade (economia verde); o aumento da produção de agrocombustíveis; a busca de alternativas de investimento financeiro e de ganho com especulação, tendo em vista a rapidez na valorização das terras em áreas de expansão da fronteira agrícola.

O Estado tem um papel ativo e importante na mudança dos marcos regulatórios, com vistas a criar condições necessárias para o avanço desses negócios com terras. Políticas de regularização fundiária facilitam a transferência de terras públicas para as mãos privadas. As áreas devolutas passam a ser negociadas e destinadas com mais rapidez. Políticas ambientais e trabalhistas são fragilizadas. Essas dinâmicas chegam aos territórios permeadas do uso da força, da violência contra indígenas, posseiros e agricultores familiares. Com isso, povos e comunidades tradicionais ora são expropriados, ora são submetidos à integração e à exploração nas cadeias globais.

Ao mesmo tempo em que observamos a crescente financeirização da agricultura e mercantilização da terra, vivenciamos um momento crítico de desmonte e enfraquecimento das políticas públicas de desenvolvimento rural voltadas para a agricultura familiar e camponesa e para os povos do campo.

O fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com o golpe de 2016, é um indício dessas estratégias, que fortalecem uma visão produtivista do meio rural. Estamos assistindo à paralisação completa de políticas públicas que trabalham com novas formas de ruralidades, que pensam o rural como espaço de vida.

E, ao mesmo tempo, temos um incentivo às políticas que reforçam o rural simplesmente como espaço de produção e de crescimento econômico pela agricultura em larga escala. Observamos, adicionalmente, mudanças importantes nos marcos regulatórios que enfraquecem a função social da terra, que pressionam direitos territoriais de indígenas e quilombolas e que fragilizam a legislação ambiental.

Todas essas mudanças apontam para um uma disputa que se desenrolará crescentemente nas áreas rurais e que coloca, de um lado, pressões pela mercantilização da terra e dos recursos naturais. De outro, a resistência dos povos do campo, indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais por seu direito de continuar existindo e pela garantia e fortalecimento de novos tipos de ruralidade que não se resumam à produção agropecuária. O que está crescentemente em jogo são as possibilidades de existência e de fortalecimento de um rural com gente e detentor de formas alternativas de desenvolvimento e de vida, frente a dinâmicas crescentes de mercantilização e financeirização da terra e da natureza.

Este artigo faz parte do livro “Outras Economias: alternativas ao capitalismo e ao atual modelo de desenvolvimento”, publicado pelo Instituto Pacs em 2018

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