“Eu, mulher baixadense, resisto!”

Instituto Pacs
7 min readJul 23, 2019

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O impacto da militarização na vida das mulheres da baixada fluminense

Marcelle Decothé, mulher preta e periférica, militante do movimento de favelas e periferias do RJ, faz parte do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro. Educadora popular e mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH/UFRJ)

A Baixada Fluminense, na Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro, é onde repousa o imaginário de muitas de nós sobre os efeitos do que chamamos de “Violência Urbana” e “Militarização”. Nesta região, os dados sobre homicídios, chacinas e desaparecimentos forçados nos expõem um processo histórico. De acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), compilados pelo Fórum Grita Baixada[1], só nos três primeiros meses de 2019 houve um recrudescimento da violência policial, aquela praticada justamente por quem deveria zelar pela segurança do povo do estado do Rio. De acordo com este levantamento, apenas nos três primeiros meses de 2019, foram registrados 137 casos de execução por autos de resistência na Baixada Fluminense. Um aumento de 11,4% em relação ao mesmo período do ano anterior. Em 2018, os números dessa modalidade de violência letal já eram maiores que os de 2017.

É importante ressaltar que apesar da população da região ser a metade da capital carioca, a área metropolitana apresenta taxas de homicídios e violência, em geral, muito mais alarmantes. De início, como forma de descrever o contexto de onde nos vemos sendo corpos que circulam e habitam este território, cabe dizer que, no caso do Brasil, ainda que a maioria das vítimas de homicídios seja de gênero masculino, — 9 em cada 10 homicídios são de homens, sendo 75% negros e 59,1% jovens entre 15 a 29 anos[2]-, é nas mulheres que vemos a resistência de lutar por quem foi assassinado, por quem ficou e pelo projeto de sociedade que queremos implementar na Baixada Fluminense.

A partir de nossas vivências e subjetividades, conseguimos mensurar o impacto dessa violência letal em nossos próprios corpos, além de nossos filhos, maridos e enteados. Sentimos a violência de impacto “direto e indireto”. A violência direta é representada pelos dados oficiais: no ano de 2016, 10.652 mulheres sofreram lesão corporal dolosa ‒ quando há intenção de causar dano corporal ou agredir a vítima ‒ na Baixada Fluminense. O estado do Rio de Janeiro contabilizou um total de 44.693 lesões corporais dolosas, logo, só a Baixada representa cerca de 24% desse total (ISP). Já o impacto “indireto” compromete diariamente nossa saúde física e mental.

No ano de 2017, um grupo de moradoras da Baixada participou de uma “Cartografia Social” que visava discutir o impacto da militarização na vida daquelas que estão imersas no cotidiano do território baixadense. Nós, mulheres que residimos na Baixada, identificamos que a prática e a reprodução do machismo são importantes propagadores da insegurança que sentimos quando usamos serviços públicos e privados em nossos municípios. O machismo, que tira oportunidades e viola direitos fundamentais das mulheres, apareceu na cartografia através da forma como os agentes do Estado (principalmente policiais) e demais funcionários públicos atendem as mulheres no exercício de seu serviço. Foram constantes as vivências de machismo compartilhadas em ambientes de trabalho formal, transporte público, relação com a polícia e na ausência do direito de ir e vir, a qualquer hora da noite, em alguns bairros dos municípios da Baixada Fluminense

Desde o princípio, a construção da narrativa sobre “o que é ser uma mulher na Baixada” ampliou nosso olhar sobre o que é “militarização” e de que forma as violências derivadas do racismo e machismo são determinantes para a construção da nossa identidade e da relação com o território em que habitamos. Entender a “militarização” para além de operações policiais nos municípios da região, do uso do caveirão e de outras armas letais pela mão armada do Estado, foi primordial para compreender o que para nós mulheres significa viver sobre a constante presença da prática militar de controle social, seja pela polícia, seja por grupos de extermínio ou pelas milícias.

O uso do caveirão no Castelar (favela de Belford Roxo), o estupro sem solução na praça em Coelho da Rocha, a chacina em Nova Iguaçu, o ponto de desova em Nilópolis, a “guerra” entre facções em Mesquita, o grupo de extermínio em Caxias, a milícia em Seropédica. Para nós, todas estas formas de violência são resultado do processo cotidiano de militarização em nossos territórios. Em nossos municípios observarmos a atuação de diferentes atores estatais e não-estatais para entender o “porquê” dos nossos e nossas serem os mais afetados. Por que continuamos a morrer? Por que nos privam de estudar? De ter acesso a saúde? Por que em nossos bairros, historicamente, a violência é perpetuada pela polícia, por grupos de extermínio, por milícias e até mesmo por nossos maridos e companheiros? São muitas Baixadas, realidades diferentes, mas, no fundo, similares em sua reprodução cotidiana de dor. Ser mulher aqui é um ato de resistência.

Por que a mobilidade urbana por aqui pode ser vista como um ato de violência e militarização? Ou até mesmo o ato de procurar acesso à saúde ou à educação? Nós, mulheres, geralmente somos aquelas que sustentam a casa, criamos nossos filhos e/ou enteados, temos o trabalho de “fora”, aquele que nos faz pegar o trem logo cedinho para atravessar a cidade — para muitas vezes trabalharmos em serviços domésticos em casas ricas de áreas nobres -, ou até constatar que nossas mães e avós passam mais tempo criando os filhos dos ‘outros’, os patrões, do que nós mesmos.

O ato de atravessar a cidade pode ser marcado por muitas coisas. Por exemplo, é importante lembrar o caso da Joana, jovem assassinada quando tentava pegar o trem em Coelho da Rocha para ir à faculdade. Joana tinha 19 anos, foi arrastada pelo trem e seu corpo ficou nos trilhos por mais de 6 horas até ser retirada. “Um acidente”, “Um corpo”, “Mais um”. Constantemente essa é a narrativa adotada pela mídia quando aborda questões sobre a Baixada Fluminense.

Mas será mesmo um acidente? Por que o Estado tem tanta dificuldade em assumir a culpa estrutural sobre o genocídio que é perpetuado nas favelas e periferias do Brasil? Genocídio esse que tem cor, nome, território e rosto, rosto de milhares de mulheres que têm sua vida impactada pela ferramenta estatal da militarização. Lutamos para que o eixo que nos conecta seja menos de dor e mais de esperança e mudanças estruturais. Nós, mulheres, lideramos processos de busca por justiça, pela defesa dos direitos humanos, estamos no campo e na cidade, carregamos a bagagem de diversas gerações entre nossas mães, filhos e netos, somos aquelas que estão de frente na Baixada para lidar com as dinâmicas sociais e criminais que nos violam e criminalizam.

Foto: Painel pintado em homenagem à Joana Bonifácio nos muros da estação onde ela morreu, em Coelho da Rocha, Baixada Fluminense. Reprodução: Casa Fluminense.

Em meio a dor, ousamos nos reinventar e ter esperança. Sim, a reinvenção cotidiana da mulher baixadense está no ato de continuar respirando. Apesar de todo o machismo, racismo e perpetuações de outras violências, esta mulher levanta todo dia, enfrenta o assédio no transporte público, o racismo de seu patrão, o olhar estigmatizado por afirmar ser “baixadense”, cuida de seus filhos, se torna o pilar de sua família, reza/ora, pede aos orixás força para aguentar o dia de amanhã, enfrenta o Estado, pede justiça. Nós, definitivamente, não somos apenas uma estatística negativa, mas sim a ressignificação da guerreira, que produz e conduz o seu próprio destino se apropriando de ferramentas de sobrevivência na sua busca por transformação social em seu território.

[1] https://www.forumgritabaixada.org.br/proposicoes-para-a-garantia-da-vida

[2] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/brasil-tem-180-homic%C3%ADdios-por-dia-e-75-s%C3%A3o-de-negros-diz-atlas-1.343494

ENCARCERADAS

(Poesia de Carol Dall Farra, jovem preta baixadense, poeta e MC)

Já nasce com o lugar pré-determinado

Seu ambiente, tem que ser o privado

Dentro de casa pro amor, pra dor, pro servir

Se ela se atreve a sair

Muito terá que ouvir

Família, Amigos, pai, mãe, irmão

‘seu lugar não é na rua é na pia ou no fogão’

Fuja mulher, desse domínio

Fuja mulher, desse extermínio

Fuja mulher, do feminicídio

Abra sua cabeça, afaga o raciocínio

Não tenha medo do que pode vir

Enfrenta esse machismo, ele há de cair

Ele tem que cair!

Nós vamos destruir!

Libertas, do mundo sexual

Mas não podem beber, vai ser desculpa pra bacanal

O homem não entende

Não é isso que ela quer

Se aproveita da situação

E culpa a mulher

Culpadas por beber

Culpadas por sair

Culpadas por viver

Culpadas por se divertir

Encarceradas

Dentro do próprio lar

Encarceradas

Nós precisamos mudar

Encarceradas

Em toda situação

Encarceradas

Homem não é teu patrão

Derruba essa parede

Que o padrão subiu

Ela tem muito concreto, só te deixa servil

Mas não é impossível, de derrubar

Continuar com essas correntes só vai privilegiar

Os homens

Donos de si

Tão pouco se lixando se o machismo é ruim

Levanta! Essa tarefa é tua

É dura, é árdua, mas não é o fim de tudo

Depois dela virá

liberdade e decisão

Essa é tua escolha, tá na tua mão!

Não levante cedo só pra preparar o feijão

Já levanta cedo com a enxada na mão

Levanta cedo

E também morre mais cedo

Jornada tripla

Mãe, dona de casa, trabalha e ninguém identifica

Que é por ela

que a casa toda se sustenta

Mesmo quando seu trabalho não produz grana

é ela que se arrebenta!

Ê filin..se oriente!

Ela dá sua própria vida

Pra que a sua movimente.

https://youtu.be/DbQXy_jcCXE

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