Estratégias de enfrentamento ao atual modelo de desenvolvimento: reflexões a partir do campo

Instituto Pacs
8 min readJun 27, 2019

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Nívia Regina da Silva, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra / Via Campesina

É muito difícil discutir campo-cidade hoje sem fazer a conexão com a história da sociedade e com a história da natureza. Compreendemos os processos históricos de forma fragmentada — período comunal, escravismo, capitalismo etc. — sem perceber o fio condutor entre eles. Como foi, por exemplo, a relação entre o ser humano e a natureza e, a partir disso, a relação com a organização do trabalho?

É na relação entre trabalho e natureza que nos construímos, ao mesmo tempo em que agimos sobre ela. O trabalho humano sempre foi a categoria fundante para a transformação da natureza e a criação das condições materiais para a vida, num processo de produção de conhecimento. Em muitos momentos, essa relação não foi harmoniosa, mas era sinergética, cooperada etc.

A partir do esforço para elaborar uma leitura sobre a concepção da agroecologia, a Via Campesina tem problematizado essa desconexão entre a história da sociedade humana e a história da natureza. Para tal, têm analisado esse processo em torno do conceito de agri-culturas, que dizem respeito às diversas formas de organizar o trabalho com a natureza. Alguns autores e autoras da agroecologia consideram essa visão histórica e sistêmica para falar de uma coevolução natureza-sociedade. Ou seja, a história é um processo de coevolução social e ecológica.

Há algumas referências dessa evolução histórica que estão presentes em nosso cotidiano. A diferença entre o teosinto e o milho (figura 1) ou entre as raças de gado Auroque e Holstein Frísia, por exemplo, fazem parte de uma construção histórica que é resultado dessa interação socioecológica na construção de sistemas agrários biodiversos.

Essa relação sociedade-natureza nem sempre foi harmoniosa, vide as guerras na Idade Média nos períodos que oscilavam entre abundância e escassez de alimentos. No feudalismo a Igreja detinha boa parte do excedente da produção dos servos, a qual ia para os senhores feudais. Isso era permeado de conflitos o tempo todo, mas havia ainda uma relação de cooperação. Esses camponeses-servos tinham uma grande noção do funcionamento da natureza, como a divisão entre os sistemas de produção animal e vegetal, por exemplo.

Os incas também são outro bom exemplo. É impressionante a forma como dominavam a compreensão sobre o uso da água e os sistemas hidráulicos. Por mais que existissem diversos conflitos sociais entre esses povos, havia também uma sinergia, um pacto comum de relação com a natureza, permitindo sua recomposição e resiliência. O ser humano se formava nessa dinâmica, pois enquanto buscava recursos para atender às suas necessidades, provocava o desenvolvimento das suas capacidades humanas e de seus conhecimentos.

Essa maneira histórica de se relacionar com a natureza é diferente da forma como nos relacionamos hoje, sobretudo nos últimos 150 anos. Quando compreendemos essa diferença, podemos visualizar que a dicotomia entre campo e cidade também é resultado de uma construção histórica.

Ao longo da história, a relação entre ser humano e natureza sofreu mudanças qualitativas e quantitativas. A agricultura e o trabalho precisam ser analisados sob quatro dimensões:

1. Processo de humanização: evolução técnica, biológica e cultural — a espécie humana não nasce agricultora (Mazoyer & Roudart, 2001)

2. Transformação da natureza e transformação da natureza social da espécie humana (Marx, 1983: 149)

3. Evolução da agricultura: análise da agricultura e sistemas agrários ao longo do processo histórico

4. Agricultura de base industrial: Revolução Industrial

Neste último ponto, a profundidade da análise se dá na acelerada urbanização e industrialização que provoca a ruptura do metabolismo social e ecológico (Foster, 2005) entre campo e cidade pós-Revolução Industrial (1760–1840). O metabolismo pode ser entendido como a capacidade de geração de riqueza material por meio do trabalho, que não pode estar separada do potencial de geração de riqueza da própria natureza. Segundo Marx, o modo de produção capitalista imprime uma falha irreparável entre os metabolismos sociais e naturais. A falha é resultado da alienação material da sociedade capitalista das condições naturais que conformam a base de sua subsistência.

A ruptura metabólica é o conceito que ajuda a compreender o momento histórico em que o ser humano, sobretudo no capitalismo e mais fortemente na Revolução Industrial, passa a querer equiparar o tempo da natureza ao tempo das necessidades do desenvolvimento das forças produtivas do capital. O tempo do trabalho passa a ser dinamizado como o tempo das fábricas. Para isso, faz-se necessário tornar artificial o tempo da natureza, possibilitando o domínio sobre o processo de produção. A agricultura passa a ser um ramo da indústria.

Exportação por fator agregado

Fonte: SECEX/MDIC. Disponível em: http://www.mdic.gov.br/comercio-exterior/

Nesse processo de ruptura metabólica, dá-se o processo de alienação. O ser humano, alienado da natureza, já não conhece mais o ecossistema, e o trabalho alienado passa a estar subordinado à indústria e à cidade. Essa alienação é a base para o conceito de “natureza intocada” e “natureza selvagem”.

Área plantada destinada à produção de alimentos e de commodities no Brasil em 1990 e 2015 (milhões de hectares)

Fonte: Elaboração própria, com base na Produção Agrícola Municipal — IBGE

Esse processo de ruptura gera um intenso grau de alienação, em que o trabalhador e a trabalhadora passam a não se reconhecer no próprio trabalho. O ser humano, que ao longo da história teve uma relação bastante diversa e integral com a natureza, passa a se distanciar dela. Como consequência, ocorre o rápido crescimento das cidades em detrimento do campo.

Três processos históricos cristalizam essa ruptura: (1) o capitalismo industrial, transformando o alimento em mercadoria; (2) a revolução verde, destacando aqui suas diferentes etapas e não somente o processo iniciado na década de 1950; e (3) o profundo oligopólio dos processos produtivos de alimentos — cadeias agroalimentares.

O Brasil assume destacado papel no processo de reprimarização das economias, ou seja, no desenvolvimento da agricultura de commodities, que afasta a natureza e a produção agrícola do consumo alimentar. Esse processo intensifica as atividades da agricultura industrial voltadas para a produção de commodities, como pode ser visualizado nos dados do gráfico 1, sobre a variação da exportação brasileira entre 2004–2013. Aumentam os produtos básicos, em detrimento da exportação de produtos manufaturados.

A partir do processo de reprimarização da economia, há uma redução da área destinada à produção de alimentos da cesta básica, como arroz (Oryza sativa), feijão (Phaseolus vulgaris) e mandioca (Manihot esculenta). Aumenta por outro lado a área destinada à produção de commodities para exportação, como cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), milho (Zea mays) e soja (Glycine max). O gráfico 2 ilustra esse processo, que incide sobre a segurança e soberania alimentar nos país.

Ao mesmo tempo em que aumentam as áreas destinadas à produção de commodities, aumenta de modo bastante significativo o uso de agrotóxicos, como mostra o gráfico 3. Chama atenção o produto formulado e o princípio ativo desses agrotóxicos.

Evolução do uso de agrotóxicos no Brasil entre 1997 e 2015.

Fonte: Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. Disponível em: http://contraosagrotoxicos.org/

É importante dar destaque ao fato de que, nesse processo de ruptura, o Brasil está sendo ponta-de-lança na biologia molecular a partir do desenvolvimento de organismos geneticamente modificados (OGMs), transgênicos etc. Há uma relação direta desse processo com a ampliação do monocultivo das commodities agrícolas. Em 2015, as lavouras de soja, milho, cana-de-açúcar, café e algodão ocuparam 80% da área agricultável do país, o que representa 77 milhões de hectares. A área total cultivada com sementes transgênicas está na faixa dos 49 milhões de hectares (crescimento de 11%). Atualmente, 93,4% da área das culturas de soja, milho e algodão são transgênicas.

A inflexão durante o atual governo golpista de Michel Temer só piora esse quadro no que diz respeito aos marcos regulatórios e ao monitoramento do uso de agrotóxicos, a partir da limitação de atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O avanço da aprovação, na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, do projeto de lei que dá fim à obrigatoriedade de inserção da letra “T” nos rótulos de alimentos feitos com matéria-prima transgênica (PL 34/2015) é um bom exemplo.

Uma das estratégias da Via Campesina tem sido apostar na crítica às variadas contradições desse modelo: expulsão das populações do campo; concentração da terra, da renda e da riqueza; insegurança alimentar e perda da soberania alimentar; diversos impactos na saúde; violência, exploração do trabalho, devastação ambiental e impunidade; contaminação genética e efeitos desconhecidos sobre os transgênicos etc. Em 2018, uma das pautas principais de luta tem sido a questão da água, não só no que diz respeito à denúncia da escassez, mas também sua contaminação e privatização.

A destruição desse modelo de agricultura capitalista passa pela superação da alienação entre campo-cidade. Nesse sentido, a agroecologia é uma ferramenta fundamental, visto que ela se fundamenta em três acepções: (1) prática social — conhecimento; (2) ciência — base material e relação social e (3) movimento (lutas populares).

Para terminar, vale resgatar algumas reflexões trazidas pela cosmovisão indígena:

(1) “A Terra não nos pertence. Nós não a herdamos dos nossos antepassados. Nós a tomamos emprestada dos filhos que virão”.

(2) “O homem não tramou o tecido da vida, ele é simplesmente um dos seus fios. Tudo que fizer ao tecido, fará a si mesmo”.

(3) “Porque o meu povo ama a natureza como um recém-nascido ama o bater do coração da sua mãe.

Precisamos resgatar essas cosmogonias para resgatar nossa relação orgânica com a terra, que nos foi interrompida. Não queremos o desenvolvimento sustentável, nós queremos a vida sustentável.

Referências

AGROTÓXICO MATA. Agrotóxico mata: Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida. Disponível em: <http://contraosagrotoxicos.org/>. Acesso em: 15 ago. 2018.

ALTIERI, M. A. (1989). Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE.

DOEBLEY J. (2001). George Beadle’s Other Hypothesis: One-gene, One-trait. Genetics, 158, pp. 487–493.

FOSTER, J. B. (2005) A ecologia de Marx — materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

GUZMÁN, E. S. & MOLINA, M. G. de (1996). Sobre la agroecologia: algunas reflexiones en torno a la agricultura familiar en España. In: LÉON, M. A. G. de (Org.). El Campo y la ciudad. Madri: MAPA, pp. 153–197.

MARX, K. (1983). O Capital, tomo I, volume I. São Paulo: Abril Cultural.

MARX, K. (1985). O Capital, volume I, tomo II. São Paulo: Abril Cultural.

MAZOYER, M. e ROUDART, L. (2001). História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Editions du Seuil; Instituto Piaget.

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