Campanha Essa Terra Tem Lei: Repatriarcalização dos territórios

Instituto Pacs
5 min readApr 23, 2024

Em março de 2024, o Instituto Pacs, em parceria com a Justiça Global e a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, lançou uma série de conteúdos sobre a Campanha Essa Terra Tem Lei, pela aprovação do PL 572/2022 — Lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas. Os conteúdos apresentam os aspectos jurídicos do texto que pode se tornar a primeira lei do mundo a trazer garantia de obrigações diretas para as empresas e direitos para os povos.

A partir da mobilização dos territórios impactados pelas atividades de grandes empresas e corporações e da articulação com movimentos sociais, universidades públicas e entidades da sociedade civil organizada, o PL 572 foi apresentado no Congresso Nacional em março de 2022 e ainda está em tramitação.

Entenda mais sobre o projeto:

REPATRIARCALIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS

Muitas das atividades que desempenhamos no nosso dia a dia têm rastros da energia de nossas mães, avós e das mulheres do nosso convívio. Quando uma criança vai para a escola com sua roupa passada, quando uma roça é colhida e o almoço é servido para uma família, ou quando um idoso é amparado, geralmente são as mulheres que estão desempenhando um trabalho invisível. Com a divisão sexual do trabalho, às mulheres foi historicamente atribuído o trabalho reprodutivo, vinculado com um conjunto de atividades que passam pelo cuidado familiar e pela criação dos filhos, pelo trabalho na roça e limpeza da casa, pelo preparo da alimentação e outras tarefas.

Mais inclinadas aos afazeres cotidianos , as mulheres tecem uma relação com a terra e com os recursos comuns disponíveis em seus territórios de maneira mais profunda. Inclusive, muitas vezes são elas as mais engajadas e comprometidas com a sua defesa. Quando os territórios de vida destas mulheres são explorados por empresas, seus corpos-territórios são especialmente atingidos pelas violações.

Em suas invisíveis tarefas cotidianas, as mulheres se sobrecarregam. Mães que vivem perto de siderúrgicas precisam levar continuamente seus filhos aos postos de saúde devido a problemas respiratórios. Mulheres que tem seus rios capturados pelas atividades industriais, precisam andar quilômetros para buscar água para a subsistência de suas famílias. Chefes de família veem suas roças sendo destruídas pelas novas cercas que empreendimentos sobem em suas terras.

Conhecidas como mega projetos de desenvolvimento, essas estruturas, públicas e privadas, tendem a gerar uma série de impactos socioambientais e violações aos direitos humanos, incluindo a desapropriação de moradores, a destruição de seus bens comunitários e a repatriarcalização do território. Esses projetos, que se dizem grandes, são considerados projetos de destruição, uma vez que retiram o envolvimento comunitário e as condições de vida que existiam previamente a sua chegada.

Por isso, o Projeto de Lei 572/2022 busca traçar diretrizes nacionais sobre a atuação de empresas em respeito aos direitos humanos de grupos atingidos por elas, atribuindo responsabilidades ao setor empresarial e ao Estado. Posto que as comunidades locais estão em um cenário de assimetria de poder, uma série de normas foram propostas para proteger os direitos humanos, territoriais e ambientais de comunidades atingidas por empresas. Mas, será que os artigos, incisos e parágrafos expressos no corpo da lei beneficiam de alguma forma as mulheres que sentem estas violações em seus corpos-territórios?

Um efeito imediato da instalação e operação de megaprojetos é o que chamamos de repatriarcalização dos territórios. Com a chegada de um grande contingente populacional masculino, as mulheres observam o agravamento da violência de gênero, da violência doméstica, da divisão sexual do trabalho e da busca por prostituição, além da insegurança pela escalonada dos casos de estupro. Para atuar contra esses casos, o PL 572/2022 propõe uma série de obrigações às empresas, entre elas o respeito a todas as normas internacionais e nacionais que proíbem a discriminação de gênero.

Outro aspecto comum é a criminalização ou difamação de mulheres que se posicionam como defensoras. Nesse caso, as empresas se tornariam obrigadas a respeitar os processos coletivos e outras formas de representação das comunidades e dos defensores de direitos humanos. Mais do que isso, se tornaria encargo da empresa criar mecanismos de viabilização material da participação comunitária na tomada de decisões, o que inclui transporte e alimentação durante eventos destinados à consulta popular. Considerando que, muitas vezes, as lideranças femininas têm sua ação política restringida devido às atividades que devem desempenhar na esfera do lar, garantir as condições materiais para a sua presença aumenta a participação das reivindicações de mulheres nestas arenas políticas.

Nas lutas por justiça ambiental notamos uma forte discrepância no acesso às técnicas e ao conhecimento científico por parte dos atingidos, enquanto as empresas se resguardam em uma muralha de informações técnicas. No PL, além de normas para aumentar a divulgação destas informações, consta o pleno acesso a todos os documentos que possam ser úteis e a garantia de assessoria técnica independente aos atingidos, sendo custeadas pelo empreendedor violador.

Há ainda um elemento muito caro às mulheres atingidas: as empresas costumam alegar que não há verificação científica absoluta das violações que cometem. Recorrentemente, as mulheres atingidas são atravessadas pelo adoecimento psíquico, seja pela lentidão processual no caso da judicialização dos conflitos, ou pela dificuldade de provar seus argumentos, sobretudo àqueles que se relacionam ao âmbito reprodutivo. No PL, consta a impossibilidade de as empresas invocarem a inexistência de relação entre elas e os danos que causam e o princípio de razoável duração dos processos que versem sobre a reparação de direitos humanos, garantindo prioridade a esses casos.

Com o aumento do trabalho reprodutivo e a insegurança alimentar, o PL fornece algumas garantias, como a exigência de que as empresas detenham um Fundo destinado ao custeio das necessidades básicas dos grupos atingidos, que contempla o fornecimento de auxílios financeiros emergenciais, atendimento das demandas prioritárias de saúde e fornecimento de água potável. Ao Estado, cabe aperfeiçoar os mecanismos de proteção aos recursos hídricos e a responsabilização pelos estudos de impacto social, laboral e ambiental da atividade econômica.

Embora a menção à palavra mulher não esteja presente no corpo da lei, e só constem duas menções às discriminações de gênero, existem propostas no PL que beneficiam diretamente as mulheres atingidas. O PL 572/2022 pode contribuir para o aumento da presença feminina nas esferas de decisões políticas, para o controle da violência de gênero e da sobrecarga dos corpos femininos nos territórios atingidos. Ao abrir caminhos para a participação política de mulheres atingidas e para a inclusão de suas demandas frente a grandes projetos de desenvolvimento, essa ferramenta pode fortalecer a justiça socioambiental.. Ainda que estejamos nos primeiros passos, o PL 572/2022 traz pontos que podem se desdobrar em benefícios concretos para as mulheres em seus territórios.

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