Defender o território-terra e não defender o território-corpo das mulheres é uma incoerência política
Lorena Cabnal, guatemalteca e feminista comunitária
“Ser mulher, indígena e feminista comunitária é uma provocação”. Tudo que vou dizer é uma provocação. Para falar de pensamentos críticos e emancipatórios, vou me auxiliar com alguns elementos e falar sobre cosmogonia, e isso é outra provocação.
[Lorena inicia a construção da linha do tempo das opressões na América Latina — ou Abya Yala, conforme se refere ao Nosso Continente o povo Kuna]. No calendário gregoriano, estamos no ano de 2017 — nosso tempo presente. Para o povo maia, estamos no ano 5125. Trata-se de um calendário de memória mais ampla. Há uma diferença substancial em relação ao calendário gregoriano.
Para os povos indígenas, o tempo não é linear; o tempo é circular. No esquema que vamos fazer, representaremos o tempo de forma linear somente para facilitar a nossa dinâmica. Ao final da linha, temos o tempo enrolado na pedra [representado pelo novelo de lã].
Para o povo maia, os k’atun significam treze fios de tempo enrolados na pedra. Isso significa que nossa memória alcança, através da oralidade e dos movimentos astronômicos, uma dimensão bastante ampla.
A cor verde representa o tempo de relação com a natureza (território-terra). Estamos aqui considerando o tempo maia, porque ser feminista e ser mulher indígena nos convida a refletir a partir de que lugar e de que feminismo estamos falando. Como mulher indígena, uma provocação é falar de outro tempo e outro lugar que não me corresponde. Existem feminismos eurocêntricos, brancos, de classe, acadêmicos, hegemônicos etc., os quais fazem uma interpretação das opressões e dos corpos das mulheres no mundo de maneira escandalizada. Para falar de outras economias, é preciso compreender o nosso lugar de denúncia: meu território-corpo e meu território-terra.
Meu local de fala não é a América Latina, porque esse é o nome que o colonialismo impôs sobre todo o nosso território. Eu falo desde Abya Yala, que é o verdadeiro nome desta terra. A cor verde, território-terra, representa então Abya Yala.
As feministas comunitárias na Guatemala — reconhecendo aqui que há diferentes feminismos comunitários em diferentes lugares — acreditam que essa relação harmônica de vida, que foi gerada no mundo pelos nossos ancestrais, se rompeu há alguns milhares de anos, próximo ao ano 2050, considerando o calendário maia. Da mesma maneira, a relação dos corpos também foi rompida. Havia outras relações entre os corpos, porque os povos indígenas acreditam no princípio da pluralidade da vida. Assim, neste mundo, que foi gerado há milhares de anos, não havia corpos de homens e de mulheres, mas a existência do corpo plural.
Esta ruptura acontece porque entre os povos indígenas também há uma forma patriarcal ancestral originária que nasce antes mesmo da colonização espanhola. Esse machismo indígena se expressa de diferentes maneiras e existe até os dias de hoje. As disputas territoriais são um grande exemplo dessa opressão ancestral e originária. O papel das mulheres indígenas na disputa territorial é também uma forma do patriarcado indígena.
Assim viviam os povos em Abya Yala, quando há 526 anos sofremos a colonização sobre a terra e sobre os corpos. Do outro lado do mar, veio uma forma patriarcal diferente — com seu próprio tempo, seu próprio contexto, sua própria maneira. Em barcos, chegaram até aqui trazendo consigo o machismo colonial patriarcal ocidental.
Deste lado do mundo, não existiam as religiões, não existia Deus, a Virgem Maria nem o pecado. Não existia matrimônio. Não tínhamos um modelo econômico nem a propriedade privada da terra — nada disso existia. Tudo isso veio do outro lado do mundo.
Esse patriarcado europeu não veio sozinho. Muitos anos antes, a Espanha já havia arrancado da África corpos de mulheres e homens negros e os trazido para a escravidão. Não foi perguntado aos corpos negros o que eles queriam fazer — eles não vieram passear no outro lado do mundo. Foram corpos escravizados. Estes corpos negros também trazem consigo uma forma patriarcal ancestral africana.
Quando se juntam essas diferentes formas patriarcais nesta terra, com essas histórias, se forma uma convergência patriarcal: o encontro dos patriarcados indígena, ocidental e africano. E, por isso, é bem difícil ser mulher deste lado do mundo, em Abya Yala. O machismo do homem indígena não é o mesmo machismo do homem branco urbano. O machismo indígena tem fundamentalismo e costumes. E esses também são diferentes do machismo do homem negro. As mulheres que nasceram e vivem nesta parte do mundo sofrem a convergência dessas diferentes formas de opressões.
Essa convergência patriarcal que chega junto com o colonialismo se instala sobre toda a territorialidade de Abya Yala e sobre todos os corpos. Isso nos trouxe outro sistema de opressão. Pela primeira vez, vamos experimentar algo que antes não se vivia aqui: o racismo. A colonização e o racismo se juntam sobre a violência sexual massiva dos corpos de mulheres indígenas e das mulheres negras.
Assim, se cria e se funde um novo modelo econômico sobre os corpos e sobre a terra. Toda a territorialidade Abya Yala vai ser expropriada, bem como os corpos de homens e mulheres indígenas e os corpos de homens e mulheres negras. Compreender essas categorias é importante para compreender a forma de economia que se consolida em Abya Yala, visto que violência sexual, genocídio, saques e invasões são as bases fundantes desse modelo.
Inaugura-se neste território o imperialismo militar. Como mencionamos, já havia em Abya Yala problemas por disputas territoriais, mas ainda não havia imperialismo. Essa forma de violência veio do outro lado do mundo, considerando que os colonizadores já possuíam experiências nessas práticas.
Uma das razões para o nascimento do imperialismo deste lado do mundo se deve à crise econômica pela qual passou a Espanha nos tempos de colonização, acarretando a necessidade de expandir seu comércio. A Espanha passou a ser uma das primeiras potências econômicas mundiais graças ao saqueio e ao despojo das riquezas dos nossos territórios.
Quando se para de pagar os impostos para a coroa espanhola, nascem as fronteiras e, por conseguinte, o Estado-Nação, com forma de organização, idiomas e moedas próprios. O Estado-Nação Colonial é incapaz de resolver os graves problemas que correspondem aos direitos humanos. Ao contrário, ele mesmo viola os direitos humanos e se esquece da natureza. E, como são incapazes de resolver os graves problemas dos direitos humanos, surgem as guerras contra as insurgências.
Na Guatemala, por exemplo, estamos há 36 anos em guerra. Há 21 foi firmado um Tratado de Paz, que nada mais foi do que a transição para uma nova etapa da própria guerra. Os contextos de países como Guatemala, Honduras e El Salvador, bem como dos demais países da América Latina, foram estratégicos para o surgimento do neoliberalismo.
Com toda essa complexidade histórica e estrutural de opressões, não é por acaso que deste lado do mundo existam os maiores índices de feminicídio, com os primeiros lugares mundiais do ranking disputados estatisticamente por Guatemala, Honduras e México.
Contudo, é importante destacar que, por todo esse histórico de violência, deste lado do mundo nascem também, de maneira muito forte, as formas de resistências das mulheres que se indignam e lutam para reivindicar seus direitos. A violência territorial é uma das formas de violência cometidas contra as mulheres e contra os povos. A luta em defesa do território, dos corpos e contra todo esse sistema de opressão que se junta aqui foi atraindo a criminalização e diversas questões judiciais sobre os insurgentes.
Como não vamos estar cansadas, doentes e com desesperança em 2017? Viver deste lado do mundo não é fácil, com todas essas opressões. A linha do tempo que construímos aqui mostra como se configuram as diferentes formas de machismo — lutamos na cama, lutamos na rua, contra os funcionários públicos, com os companheiros das nossas organizações, contra o cacique indígena, contra o Estado — que é colonial, racista, patriarcal, sexista etc. Precisamos lutar o tempo todo e isso cansa muito.
Depois de todo o exposto aqui, podemos voltar para a reflexão sobre a questão central deste seminário: é possível pensar outras economias sem pensar o machismo, o racismo, o patriarcado, o colonialismo, o neoliberalismo, a globalização? É possível pensar em outras economias sem pensar nos corpos que até hoje estão sendo escravizados?
Ainda há muito o que fazer. Por exemplo, quando denunciamos todas as violências sobre os nossos corpos, os companheiros se afastam. Queremos denunciar as violências cometidas por vários companheiros agressores sexuais dentro dos movimentos mistos. Mas denunciar a violência que acontece dentro dos movimentos é muito difícil. Temos aqui uma grande contradição.
Defender o território-terra e não defender o território-corpo das mulheres é uma incoerência política. Se você se indigna contra agrotóxicos, contra os transgênicos, contra a mineração etc. e não se indigna quando uma mulher é violentada, rompe-se a rede de construção de um novo mundo, rompe-se a rede da vida.
A mesma reflexão vale na lógica inversa. Se queremos feminismos que defendam os corpos emancipados, mas esses feminismos não falam de territórios emancipados, então a luta do feminismo não se sustenta. Eu não posso ser feminista se falo da defesa do meu corpo, da sexualidade, mas não defendo a terra. O feminismo precisa defender a terra. Afinal, onde vão viver os corpos emancipados?
O patriarcado não nasceu na natureza, porque a natureza não gera opressão e violência sobre nossos corpos. E, se o patriarcado foi construído, ele também pode ser desconstruído. Temos que ter muita criatividade política para desmontar todas as formas patriarcais — racismo, machismo, colonialismo — porque essas violências não estão separadas. A raiz dessas opressões começou a ser gerada há milhares de anos. Precisamos chegar nessa raiz. Se só lutamos contra o racismo ou só contra o neoliberalismo — de forma isolada –, lutamos com base em opressões de apenas um lado da teia da vida.
Aqui em Abya Yala não havia luta de classes, não havia ricos e pobres. Se me perguntam se sou pobre, digo que não sou pobre. Sou empobrecida, e isso é diferente. Se me perguntam pelas minhas riquezas, eu falo de minha avó, que foi médica ancestral, falo de minha mãe, que foi “erveira”. Se me perguntam se tenho consciência das fases da Lua, falo dos ciclos de semeadura e de colheita e do vínculo delas com meus ovários — e digo que tudo isso tem a ver com o calendário maia. Essas respostas são uma grande provocação.
O feminismo comunitário é também muito espiritual porque interpela todo esse processo de mercantilização da vida sobre a terra e sobre os corpos. Temos muito medo de envelhecer, porque quando velhos somos excluídos do sistema e convencidos por ele de que já não servimos mais. É muito forte esse prazo de validade que o sistema nos coloca. Nossos corpos suportam todas essas opressões.
Por tudo isso, para terminar, deixo uma questão para refletirmos juntas: que ações podemos fazer para descolonizar, despatriarcalizar e descapitalizar nossos territórios-corpo e territórios-terra?
Este artigo faz parte do livro “Outras Economias: alternativas ao capitalismo e ao atual modelo de desenvolvimento”, publicado pelo Instituto Pacs em 2018