Butão, o país da felicidade
Praticando o bem viver como sentido da política
Introdução
A experiência concreta da criação do Índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) do Butão inspira definições em que os bens materiais estejam a serviço dos imateriais, da Natureza, e não o contrário como temos visto e sentido. Há quase uma década, o Instituto PACS tem acompanhado a evolução do índice, que é uma iniciativa do governo butanês para colocar o PIB apenas como pequena parte do conjunto de indicadores de bem viver.
O FIB é tema de um dos capítulos do livro “Vivendo o Futuro no Presente”, no qual o economista Marcos Arruda Arruda compartilha aprendizados de uma viagem feita em 2015, a três países do Oriente — Butão, Laos e Vietnã — onde, no contato com histórias e realidades profundamente diversas entre si, fez descobertas que dão força — e de certa forma ilustram — noções de desenvolvimento centradas na promoção da vida.
BUTÃO — Visão Geral do País
O Butão é um país livre não só de transgênicos, mas também, quase completamente, de alimentos produzidos com uso de agrotóxicos. Com cerca de 700 mil habitantes, a maioria nas zonas rurais, com profunda vinculação espiritual com o Budismo, este país se situa na Cadeia dos Himalaias, entre a Índia e a China, tendo ao sul uma densa floresta tropical, e em grande parte de suas fronteiras Norte e Leste o clima frio das altas montanhas do Himalaia.
A tradição política do país também é original. O Butão manteve sua soberania como país ao longo de mais de 4 mil anos. A ausência no país de construções de estilo exógeno, como fortes e castelos, ou mesmo edifícios coloniais, como noutros países da região que foram ocupados por potências coloniais ou imperiais, a meu ver evidencia essa autonomia. Mas o predomínio regional do Império Britânico entre os séculos XIX e XX, e depois a influência da Índia, exigiram do Butão a submissão de sua política externa, na forma de “aconselhamento externo”, a estas duas potências. A histórica monárquica recente do país ocorreu entre 1907 e 2008. Nesta data, o 4o Rei Jigme Singye Wangchuck abdicou em favor do seu filho, depois de liderar um processo de transição para um novo sistema de “Democracia Monárquica”. O país hoje é regido pelo jovem 5o Rei Jigme Khesar Namgyel Wangchuck e a condução do governo é feita por um primeiro-ministro, um parlamento e um corpo jurídico consolidado pela Constituição Butanesa de 2008.
O 4º Rei foi profundamente inovador, evidenciando uma presença dialógica junto à população, respeitando as tradições culturais e religiosas e, ao mesmo tempo, desfazendo a postura hierática que costuma marcar as monarquias. Por isso, e pela notável melhora da qualidade de vida e satisfação da população, ele até hoje goza de impressionante popularidade. Uma de suas frases, que poderia refletir sabedoria inspirada no Taoísmo, é “Tomem-se nas suas próprias mãos”, que se pode traduzir como “se autogovernem”. Esta noção se fundamenta no princípio da subsidiaridade, que postula que os níveis regionais e nacional de governo não devem assumir nada do que possa ser gerido e resolvido pelas próprias comunidades locais. Isto pressupõe que os bens locais, quanto possível, sejam geridos por essas comunidades, que o Estado compartilhe os bens comuns de atribuição nacional de forma proporcional e equitativa, e proveja o necessário para que as comunidades de autogovernem com o mínimo de dependência em relação ao Estado nacional e interdependência com respeito umas às outras.
O processo constituinte, lançado pelo 4o Rei e completado em 2008, quando ele já havia passado a coroa para o filho de 24 anos, foi amplamente participativo.
O uso do indicador FIB (Felicidade Interna Bruta), como instrumento de avaliação e de planejamento de políticas que promovam o bem viver e a felicidade da população, foi uma das principais inovações iniciadas pelo 4º Rei. Este indicador é bem mais abrangente que o desastroso PIB.2 Instrumenta os governos locais e nacional a orientarem seus investimentos para as lacunas do bem viver e da felicidade, levantadas pelo questionário do FIB junto à população do Butão. A pesquisa do FIB é quinquenal e fundamenta o planejamento de médio prazo da socioeconomia do país. Não apenas do estreito curto prazo de grande parte do Ocidente.
Na esfera socioeconômica, a atividade agrícola prevalece, sendo 57% da população de agricultores. O país tem um grande superávit no que se refere à captação de gases estufa, pois conserva florestas em 72% do território nacional. A população tem idade média em torno de 27 anos e a expectativa de vida é de 69,5 anos. Desde 1967 já não existe pena de morte no país.3 Além da agricultura e pecuária — quase integralmente orgânicas, com baixo ou nenhum uso de agroquímicos — o turismo e a venda de energia hidroelétrica para a Índia são outras fontes de renda nacional. Há um cuidado especial com o turismo. No aeroporto, o governo nacional exige que os turistas paguem determinada quantia em troca de um pacote de serviços e um guia. Assim, as visitas são controladas e as regras de comportamento respeitadas. O país não faz “turismo a qualquer custo”. Sua política inclui o resguardo das culturas locais e nacional. O crescimento econômico de 8% parece muito acelerado e preocupa os responsáveis do governo, que argumentam que crescimento não é sinônimo de desenvolvimento. “É a melhora qualitativa da satisfação e da felicidade de todos que conta mais”, disse um dos membros do Centro de Estudos do Butão (CES).
A 4a Conferência sobre o FIB
A 4a Conferência sobre o FIB, realizada em Paro, em novembro de 2015, foi concorrida. Éramos mais de 600 participantes do mundo inteiro, abrigados numa grande tenda, bem decorada de objetos e cores vibrantes. A íntima relação entre o Budismo butanês e o Estado ficaram manifestos na decoração e no desenrolar do programa. Contudo, diferentemente do Cristianismo de igreja-aos-domingos da maior parte do Ocidente, o Budismo é uma filosofia que pauta a prática relacional diária de cada pessoa, com base no respeito mútuo, na busca da sabedoria (iluminação) e na compaixão (amor).
Orações puxadas pelos monges vestidos de alaranjado, grupos de homens dançando e batendo tambores com baquetas em forma de ferradura, mulheres dançando e cantando graciosamente as músicas locais, tudo isto foi um festival para os olhos e a alma de quem estava presente. Ficou evidente o sentimento de orgulho do país pela sua própria identidade. Todas e todos vestiam roupas tradicionais e falavam seu idioma, o djongkha. A maioria daqueles com quem interagi também falava inglês. Em vários momentos da Conferência estiveram presentes grupos grandes de estudantes de diversas escolas do país. Em Lobesa, onde pernoitamos na casa de camponeses, um ou dois faziam de intérpretes. Outro aspecto de orgulho nacional é a arquitetura, baseada em pedra, taipa, bambu e madeira esculpida, conforme a região. A beleza prevalece sobre a preocupação meramente funcional. Por lei não é admitida arquitetura de outros países. As casas e prédios não podem ultrapassar cinco andares.
A fala de abertura do Primeiro Ministro foi impactante. Ele contou que 48 países estavam ali presentes. Questionou a falta de coerência dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, que definem metas significativas para a humanidade nos próximos 15 anos, mas não mencionam as condições e as transformações necessárias para realiza-las. Com o FIB, o Butão postula que é necessário mudar o objetivo do desenvolvimento, do lucro para a felicidade. Alguns países já reconhecem isto. Com a Conferência sobre o FIB, o Butão aprende de outras experiências como introduzir o progresso social na consciência coletiva; e define progresso como um processo holístico, equitativo, sustentável, que dá sentido ao desenvolvimento com base em valores humanos não materiais. Informou que 72% da área do país é coberta por florestas, fazendo dele um exemplo de captação de gases-estufa. Desde 2014, carros elétricos foram introduzidos e o objetivo é alcançar a meta zero de emissões no transporte. Na agricultura, os alimentos são predominantemente orgânicos e a meta é, em cinco anos, generalizar a agricultura orgânica sustentável.
A jovem democracia do Butão promove a participação dos governos municipais no planejamento quinquenal da socieconomia. A descentralização administrativa visa o empoderamento das populações locais e o aumento da eficiência na gestão do desenvolvimento comunitário, territorial e regional. Observou que a ênfase no máximo lucro no setor empresarial, com a busca do aumento sempre maior dos ganhos dos acionistas, não é sustentável. Afirmou que a responsabilidade das empresas inclui o progresso socioambiental e a promoção do bem viver e da felicidade e que para isto é preciso uma mudança no paradigma empresarial. O quinto plano do Butão visa o empoderamento do povo, uma visão para dentro do país, o incentivo aos pequenos empreendimentos, a perspectiva da autoconfiança e autodeterminação (self-reliance) e uma cultura empresarial voltada para o FIB. Mostrou que o FIB aumentou de 0,743 para 0,756 nos últimos cinco anos. Mostrou onde houve avanço e onde houve recuo. Falou do movimento migratório para as cidades, que diminui o sentido de pertencimento à comunidade e o aumento da solidão. Enfatizou a necessidade de melhoras na governança, afirmando que o governo vai se empenhar em energizar o FIB nas áreas rurais e estimular a juventude para que se sinta enraizada nessas áreas. Lembrou que, com a expansão do conhecimento do FIB noutros países, a ONU, em junho de 2012, definiu o dia 20 de março como Dia Internacional da Felicidade.
Foi na simplicidade da grande tenda que o 5o Rei nos visitou. Cumprimentou individualmente cada uma das mais de 600 pessoas que participavam da Conferência, ao longo de horas, sem demonstrar cansaço ou impaciência. De especial relevância foi a presença do Ministro de Relações Exteriores da Bolívia, Javier Zarate, falando sobre o Bom viver dos Quéchuas, e o Viver Bem dos Aymaras, que têm muito em comum com a noção de Felicidade que prevalece no Butão. Lembrou uma profecia característica da cultura de Abya Yala (“Terra de Flores”) dos povos andinos, que prevê o surgimento dos Guerreiros do Arco Iris, vindos do Sul, que irão se levantar para superar o caos que reina no mundo. Ele destacou os traços básicos desta mutação em curso no sentido de uma nova proposta civilizatória: a prática do Bem viver, o respeito aos Direitos da Terra e a recuperação dos saberes dos povos tradicionais.
Tenho abundantes notas sobre diversas palestras feitas pelas mulheres e homens participantes da Conferência, seja em plenário, seja nas mesas redondas.4 Também tenho o texto revisado, em inglês, da minha palestra apresentada no plenário da Conferência, como pesquisador do PACS e colaborador da Rede Jubileu Brasil e Américas e da Rede Global Diálogos em Humanidade.5
O FIB do Butão em 2015
Um aspecto importante da Conferência foram os relatos apresentados pelo economista Karma Ura, que dirige o Centro de Estudos do Butão (CEB) e por membros de sua equipe, sobre os resultados do mais recente processo de pesquisa dos indicadores de felicidade junto à população do Butão, em 2015.
O questionário do FIB continha 148 perguntas sobre os diversos campos definidos como capazes de gerar bem viver e felicidade.No total, 66 pesquisadores buscaram alcançar 8.871 cidadãs e cidadãos em todos os distritos do país, cobrindo as faixas de idade entre 15 e 96 anos e abrangendo todos os setores da população. A amostra visava constituir um microcosmo do país e a pesquisa foi realizada com o rigor estatístico necessário.
A finalidade deste levantamento é orientar o planejamento quinquenal do país e as políticas socioeconômicas de curto e médio prazo a fim de investir na superação das lacunas de felicidade identificadas na pesquisa. Os resultados estão contidos no livreto distribuído aos participantes, que apresenta a metodologia do FIB, seu método de aplicação e cuidadosa tabulação e interpretação pelos técnicos do CEB. Além dos resultados, o livreto também oferece uma pesquisa comparativa da evolução do FIB entre 2010 e 2015.6
O Índice FIB em 2015 foi 0,756, maior do que o de 2010, de 0,743, um aumento de 1,8%. Ao todo, 91,2% dos butaneses se disseram Profundamente Felizes, Amplamente Felizes ou Estreitamente Felizes. Apenas 8,8% se declararam infelizes.
O indicador mais geral aponta que 43,4% dos butaneses se sentem profundamente ou amplamente felizes, comparados com 40,9% em 2010. Os homens se mostram mais felizes que as mulheres e os que vivem nas cidades mais que os do campo. Os índices relacionados a mulheres, idosos, pessoas com educação não formal e agricultores melhoraram mais depressa do que os outros. Os principais indicadores que apresentaram melhora foram os relativos aos níveis de vida e entrega de serviços, saúde e participação em festivais culturais. Os indicadores de bem estar psíquico (raiva, frustração e espiritualidade), vitalidade comunitária (sentido de pertencimento) e diversidade cultural também diminuiram.
Merece relevo a questão de gênero no FIB do Butão. É preciso ter consciência de que a questão de gênero é transversal aos nove campos de indicadores do FIB. E que há interações entre os diversos campos e indicadores. O desenvolvimento humano e social exige equilíbrio e justiça de gênero, para que seja equitativo e, portanto, autêntico. O FIB no Butão distingue as diferenças biológicas de gênero, que fazem parte da natureza ontológica do humano, e as sociais, que resultam de construções culturais e de relações de poder. O FIB de 2015, assim como o de 2010, revela que há mais felicidade entre os homens do que entre as mulheres.7 Mais grave, a diferença aumentou em 13% no período. Em 2015, Educação e Boa Governança foram os itens de maior disparidade. No item uso do tempo, as mulheres trabalham uma hora a mais e têm uma hora a menos de lazer que os homens. No campo Bem Estar Psíquico e Espiritualidade, a incidência da emoção da raiva foi três vezes maior nas mulheres que nos homens. No item propriedade da terra, a parcela controlada pelas mulheres é surpreendentemente alta, em comparação com a de outros países. Mas ainda é desigual: 46% sobre o total das propriedades.
Tive uma conversa muito proveitosa com Susan Andrews, do Intituto Visão Futuro. Susan recebeu uma homenagem do governo do Butão pelo trabalho que tem realizado de difundir práticas do FIB adaptadas à realidade de escolas e prefeituras no Brasil. Ela fez uma breve apresentação de uma delas no plenário, mostrando um pequeno video.
Destacou-se a presença da Dra Tran Thi Lanh, de SPERI/CENDI/Hanoi, e dos três camponeses de minorias étnicas, dois do Vietnam e um da Tailândia, que ela convidou como participantes da Conferência. Ela contou quanto SPERI/CENDI aprendeu sobre soberania do modo de vida, ecologia espiritual e bem viver comunitário ao longo do trabalho com comunidades autóctones do Vale do Mekong (Laos, Vietnam, Cambodja e Tailândia), ao mesmo tempo em que lhes trazia conhecimentos de biologia, botânica e agrofloresta, e facilitava a construção de redes em todos os níveis, na perspectiva do empoderamento para a autodeterminação dessas comunidades e a cooperação solidária entre elas, assim como para uma interação proveitosa com as autoridades políticas.
SPERI/CENDI define “Soberania do Modo de Vida” em termos de cinco direitos interrelacionados que essas minorias étnicas consideram necessários para garantirem o controle do seu desenvolvimento: (1) básico: o direito à terra, à floresta e à água, ao ar limpo e à paisagem natural; (2) único: o direito a conservar sua espiritualidade (ou religiosidade); (3) prático: o direito de viver segundo seus próprios modos de ser e valores de felicidade e bem estar dentro do seu próprio ambiente natural; (4) holístico: o direito de agir de acordo com seu próprio conhecimento, e de decidir o que plantar, iniciar, criar e inventar em seu próprio território; e (5) estratégico: o direito de co-gerir ou co-governar os recursos naturais com comunidades vizinhas e autoridades locais. SPERI/CENDI acentua o esforço pelo reconhecimento público das leis consuetudinárias8 que vigoram nessas comunidades. O reconhecimento da legitimidade dessas leis e da Soberania do Modo de Vida pelo governo nacional são dois caminhos para superar a tendência ao crescimento industrial, com perda da terra, florestas, rios e montanhas.
Oshi, da Tailândia, falou sobre o aprendizado com os ancestrais, a lei que seu povo segue — “aquilo que tomamos da Terra, devemos ser capazes de dar de volta à Terra”. Afirmou que a floresta dá ao seu povo tudo de que ele necessita e que trabalham em mutirão na plantação do arroz. Suas atividades de lazer são tão gratificantes que já receberam visita da Austrália querendo aprender seus métodos e seu espírito. Atchon, da minoria étnica Vi O Lak, no Vietnam, contou o longo processo de reflorestamento e cuidado da terra e das aldeias. Há poucos anos, a prefeitura trouxe 21 títulos de posse da terra para distribuir pelas famílias da sua aldeia. Elas recusaram, pedindo em troca um só título em nome da comunidade. Outras sete aldeias desse povo fizeram o mesmo, e o governo as atendeu. Atchon falou de outras iniciativas: coleta de sementes nativas, construção de uma creche, plantio de árvores e criação de animais locais. Terminou mencionando a eficácia da governança participativa das aldeias.
Merecem menção as falas do Prof. Friedhelm Goeltenboth e do Prof. Keith Barber, que colaboram há vários anos com os projetos de SPERI/CENDI. Barber, antropólogo, fez uma apresentação comparativa de quatro abordagens relacionadas com a felicidade: o FIB, do Butão, o Bem viver, dos países andinos da América do Sul, a autoconfiança e autodeterminação, do Vanuatu, e a Soberania do Modo de Vida, do Vale do Mekong. Ele concluiu afirmando a convergência e complementaridade destas metodologias, e que o desenvolvimento só é verdadeiro quando é significativo para a população local, além de facilitar o empoderamento e a autogestão do desenvolvimento pelas próprias comunidades.
Antes e durante a Conferência, tivemos o privilégio de conviver com outros membros da delegação organizada por SPERI/CENDI, entre eles os três camponeses de etnias da Tailândia e do Vietnam; dois profissionais da agroecologia e agrofloresta — o Prof. Friedhelm Goeltenboth, de Tübingen, na Alemanha, e John Quayle, da Austrália, há muitos anos trabalhando na Indonésia; Graeme e Jill Jamisson, uma australiana jubilada, que trabalhou por várias décadas como assistente social de agências da ONU; e Keith Barber. Assim, foi possível conhecer melhor o alcance do trabalho de SPERI/CENDI na Ásia e no Pacífico.
Destaca-se também a presença de duas representantes do movimento Nación Pachamama, inspirada na espiritualidade andina. O movimento propõe a edificação de uma sociedade planetária sem fronteiras, a grande família humana irmanada na busca do bem viver e da felicidade, por meio dos laços de cooperação, solidariedade e amor entre os seres humanos, com a Mãe Terra e com suas criaturas. Germana e Doraci estiveram presentes na Conferência e participaram da visita às comunidades nativas do campo no Butão e no Laos. Ficou evidente a convergência de Nación Pachamama e as propostas relativas à felicidade apresentadas pelos butaneses durante a Conferência. Alguns dos valores que promove são a proteção da Natureza, da água, dos animais, dos direitos humanos e da Terra, educação e mobilização da juventude, empoderamento das mulheres, e um modo de vida voltado para o Bem viver. Também trabalha com desenvolvimento comunitário junto a aldeias de povos nativos, prestando serviços no Peru, no Senegal, e em breve na Guiné Bissau.
Tivemos igualmente a oportunidade de conviver com a delegação francesa organizada pelo Comitê Católico contra a fome e pelo desenvolvimento (CCFD)-Terra Solidária, que contou com 19 pessoas, incluindo duas companheiras da política francesa, Eva Sas, membro da Assembleia Nacional, e a outra, Marina Girod de l’Ain, vereadora da cidade de Grenoble, responsável pela Prospectiva e a Avaliação da cidade, trabalhando sobretudo com o método SPIRAL em vários bairros, avaliando as políticas públicas, e o zoneamento e a construção segundo critérios e indicadores que procedem das próprias e dos próprios cidadãos. Esta convivência com a delegação francesa, sobretudo com Céline Bernigaud e Oliana Quidoz, mais a consultora Celina Whitaker, foi também a ocasião para iniciarmos uma conversa sobre o projeto do PACS em parceria com SPERI/CENDI/Hanoi, que visa a pesquisa participativa em aldeias nativas da Amazônia brasileira e colombiana, e numa segunda fase o intercâmbio de líderes naturais dessas comunidades. Na partilha de despedida nós todos expressamos de forma convergente o sentimento de que o Butão é um país que gera entusiasmo e esperança: está concretizando utopias!
Visita a comunidades em Lobesa
Lobesa fica a 104km de Paro no sentido leste. Numa van em ótimo estado levamos 5h viajando pela estrada sinuosa, que subia e descia as montanhas do maciço dos Himalaias. Paramos alguns quilômetros antes de Lobesa para visitar um sítio de produção agroecológica, liderado por um jovem camponês formado em agroecologia, Jigme, e sua família de camponeses e a agrônoma Denkha. Vimos dois tipos de plantação de arroz, usando processos criativos de irrigação e fertilização natural. Fomos graciosamente acolhidos por uma família camponesa em Lobesa. Uma senhora acima de 80 anos dançou e cantou, a filha e a neta fizeram a refeição, o genro nos acolheu e levou ao aposento, uma das netas carregando o bisneto nas costas cuidou da limpeza. O filho era o único que falava correntemente o inglês. Foi o nosso motorista desde Paro e o nosso intérprete.
Dormimos no quarto que tem um altar e inúmeros objetos de culto. Percebi uma devoção especial a Lokitesvara — deusa da Compaixão, com seus mil olhos e braços para levar as pessoas à iluminação.
Na manhã seguinte, visitamos os campos onde o arroz havia sido colhido havia poucos dias. Rolos de palha de arroz esperavam para ser armazenados para o inverno que se aproximava. Aprendemos sobre o ritmo do plantio e das colheitas, os principais predadores. Também visitamos o Templo budista, com seu grande sino Lhakhang.
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Seminário na Faculdade de Recursos Naturais
Almoçamos na Faculdade de Recursos Naturais, onde tivemos uma tarde de seminário com estudantes, professores e o diretor. Cinco de nós fizemos apresentações, cada uma seguida de perguntas e comentários pelos participantes. Na minha fala eu contei brevemente sobre a luta no Brasil por uma economia a serviço do povo trabalhador, e não do capital, a luta dos povos nativos pelo direito à terra e à sua própria cultura e segurança. Apontei alguns dos riscos de uma possível opção do Butão pelo crescimento econômico via extração rápida e predatória de minérios, madeira, água e de outros bens comuns, e sua exportação por empresas transnacionais; o risco da crescente dependência dos mercados internacionais para vender os produtos da extração mineral e agrícola; o risco de o Butão se tornar membro das agências multilaterais, em especial da OMC — Organização Mundial do Comércio, com seu viés liberalizante em favor do capital privado, não apenas na esfera comercial, mas também na financeira (como fez o Vietnam); o fato de que a agricultura e a pecuária ‘de mercado’ só sobrevivem onde há subvenções, que dilapidam os fundos públicos; o risco de contaminação dos preços internacionais que o Butão sofreria, caso fizesse aquela opção, criando uma espiral inflacionária sem fim e uma depreciação sempre maior do valor da sua moeda; o risco envolvido na entrada de bancos transnacionais que passariam a controlar a moeda, o câmbio e, em última instância, a política econômica do país; e por que vias seria possível o aprofundamento da metodologia do FIB como lastro para uma economia do suficiente e da abundância de bem viver e felicidade integral, e não apenas material, e para um desenvolvimento tecnológico a serviço do desenvolvimento humano e social, e não do lucro. Os debates foram ricos e pertinentes, com intensa participação das e dos estudantes da Faculdade.
De volta a Paro, no dia seguinte fizemos uma reunião com o organizador logístico da 4a Conferência, Tshering Putchno. Um ponto importante foi a reflexão que alguns de nós fizemos sobre os riscos implicados na opção de abertura maior ao Ocidente, aventada por uma corrente política no Butão. Algumas medidas que propusemos foram:
• manter e aprofundar a soberania do país sobre a terra, para faze-la servir ao povo e não ao agronegócio que priva as comunidades agrárias da terra e a utiliza para dominar recursos como a floresta, as águas, o solo e possíveis minérios com o único fim de exportar e realizar máximos lucros;
• não permitir que bancos estrangeiros operem no Butão, pois eles rapidamente ganhariam o controle não só sobre a moeda, mas também a economia, o comércio exterior, o investimento em tecnologia, e o modo de desenvolvimento do Butão;
• preservar o país livre do turismo predatório, ocidentalizante, que inclui a invasão de produtos de consumo supérfluos, inclusive refrigerantes, roupas da moda, etc. O turismo comunitário que já existe no Butão merece ser estendido e fortalecido, com base na cultura e nos hábitos nacionais e locais;
• não ceder à tentação de ingressar nas agências multilaterais — FMI, Banco Mundial, e sobretudo a OMC — Organização Mundial do Comércio. Elas têm por objetivo forçar os países a abrirem suas economias para o capital transnacional, remover barreiras que protegem empresas e produtos nacionais da competição desigual daquele capital com empreendedores locais — não visam senão a privatização e desnacionalização da economia, do meio natural, das finanças, da moeda, da cultura, das aspirações e até das atitudes, comportamentos, crenças, e modos de relação.
Depois das despedidas, um pequeno grupo de nós — Lanh, Germana, Doraci e eu — partimos para o Laos.
1 Projeto “Por Um Modo De Vida Soberano: Interligando Comunidades Indígenas em oito países situados na América Latina, na Ásia e no Pacífico”, PACS-SPERI/CENDI, Hanoi. Infelizmente não foi possível realizar este projeto devido à carência de recursos para cobrir seu orçamento
2 Ouçam o excelente trecho do discurso de Robert Kennedy em 1968, em que ele critica o PIB de forma contundente, contrastando todos os males que ele mede como se fossem progresso, com as carências e dores que afligem a população, e que este índice não mede: https://www.youtube.com/watch?v=77IdKFqXbUY
3 Se este é um indicador de progresso humano, que dizer dos Estados Unidos, onde a pena de morte continua matando e alimentando o ódio (ver o filme “À Espera de um Milagre”, de Frank Darabond, com Tom Hanks e Michael Clarke Duncan). Entre 1976 e 2016 foram executadas por pena de morte 1.427 pessoas nos EUA.
4 O PACS disponibiliza para consulta o volume publicado pelo governo do Butão para a Conferência, contendo a lista de participantes os biodados dos palestrantes e os resumos de suas palestras.
5 Ver Marcos Arruda, 2015 — “Gross National Happiness, Human Development, and the Rights of Peoples”.
6 Centre for Bhutan Studies & GNH Research, 2015, “Provisional Findings of 2015 GNH Survey”, November.
7 Homens: 0,793, mulheres: 0,730 (quanto mais próximo de 1 o índice, maior a felicidade declarada).
8 Direito não escrito, baseado em usos, costumes, tradições.