A resistência aos impactos da pandemia em solo negro, favelado e periférico

Instituto Pacs
5 min readApr 17, 2020

--

Por Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul

Enquanto a televisão recomenda que se lave as mãos por pelo menos 30 segundos e a principal medida de precaução é evitar a aglomeração e o contato de pessoas, como a favela sobrevive?

Região da Serra da Misericórdia, no Complexo da Penha, favela da Zona Norte do Rio | Foto: Reprodução

“A gente precisa estar em casa, mas esse privilégio nos cabe? Como cuidar de uma pandemia quando você não tem condições seguras de higiene, tem aglomeração de pessoas e dificuldade de produção de alimentação saudável?”, questiona Ana Santos, educadora popular e moradora do Complexo da Penha, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Em meio a uma pandemia de escala global, a cidade do Rio já contabiliza mais de 80 infectados pela COVID-19 em comunidades da região, segundo dados disponibilizados pela prefeitura, somando 10 casos fatais. Com uma realidade marcada pelo reflexo da desigualdade social, a favela é impactada de forma diferenciada por esse cenário. Quando as condições de moradia, trabalho e acesso aos bens comuns são precarizadas, como moradores (as) podem seguir os protocolos de distanciamento social e higienização adequada de pessoas, alimentos e ambientes?

Mulher negra e nascida na Baixada Fluminense, é como agricultora urbana e culinarista na Serra da Misericórdia, no Complexo da Penha, que Ana planta suas mudas e ervas, produz, colhe, cozinha e comercializa os seus produtos em feiras da cidade, que foram proibidas por conta das medidas de recomendação para evitar o coronavírus. “Como é abraçar esse mercado informal agora? Como a gente escoa os nossos produtos e vê uma alternativa pra gerar renda até esse momento passar?”, reflete.

Ana Santos, educadora popular, agricultora urbana, culinarista e moradora da Serra da Misericórdia, no Complexo da Penha | Foto: Acervo pessoal

Esse cenário traz à tona a realidade de muitas mulheres como Ana, que são as que possuem as menores remunerações no país. Segundo dados de 201⁹¹, os trabalhadores (as) informais já são mais de 60% em todo o mundo e chegam a 40% no Brasil, em que a população feminina e negra é a mais afetada, já que mais de 70% do total recebe até um salário mínimo².

Além da preocupação com a geração de renda, a situação de moradores (as) de favelas é ainda mais crítica no que diz respeito ao acesso a água, saneamento básico e alimentação. De acordo com Ana, no alto da Serra da Misericórdia, onde vive, nem todos têm do que se alimentar ou condições básicas de higiene recomendadas mundialmente na prevenção da doença. “A situação da favela é crítica quando tudo que é oferecido como alternativa não tem aqui. A medida de segurança é não aglomerar pessoas e nós moramos aglomerados. A medida de segurança é lavar as mãos o tempo todo e não é em todo lugar aqui que tem água. A medida é para nos alimentarmos de forma saudável e nem todos tem alimento. Tem uma grande parte que nem casa tem. Não dá pra falar pra família ficar dentro de casa quando a gente tem uma casa muito pequena e com um número muito grande de pessoas juntas”, conta a agricultora.

Os impactos da pandemia na vida das mulheres são ainda mais perceptíveis, já que muitas são mães e estão sem condições de trabalhar, tem que cuidar de seus filhos e ainda se preocuparem com a alimentação de suas casas. “Quando o nosso trabalho informal, que é vender na rua, vender no trem, acaba de uma hora pra outra, quando a mulher que trabalha enquanto empregada doméstica não pode sair da sua casa, como a gente vai continuar alimentando as nossas famílias? A escola, que era uma das principais fontes de alimentação e ocupação das crianças, hoje tá fechada. Isso aumenta mais ainda o trabalho doméstico das mulheres”, afirma Ana. A educadora popular aponta ainda a necessidade de se debater sobre a saúde mental, o autocuidado e os efeitos dessa realidade no psicológico dessas mulheres. “Eu vi por aí campanhas muito interessantes de como se cuidar e cuidar dessas crianças em momento de quarentena e pensei: pra qual mulher? Qual realidade? A realidade aqui é tão distante, tão outra”, complementa.

Através de campanhas, estratégias de conscientização e metodologias de educação e comunicação popular, moradores (as) de regiões como essa tem se organizado de forma gratuita e solidária para ajudarem uns aos outros a minimizarem os impactos diários da pandemia. É o caso do Centro de Integração na Serra da Misericórdia, do qual Ana faz parte, que está ajudando com a distribuição de cestas básicas, cartazes, kits de lápis de cor, tintas e papéis para crianças e conversas e orientações nas casas e ruas da favela. A associação atua desde 2011 no Complexo da Penha com ações educativas e culturais, a partir das pautas de direito à cidade, soberania e segurança alimentar e nutricional, justiça socioambiental, agroecologia e agricultura urbana.

A proposta agroecológica neste momento é de aumentar o plantio e estimular as pessoas da região a contribuírem com esse trabalho. “Nós conseguimos fazer captação de água da nascente, plantamos a horta, conseguimos equipamentos, sementes… Esse é o momento de ser assistência. Se a gente busca um território de bem viver na favela, o momento é esse”, relata Ana, que acredita que a comida é o mais importante, mais do que nunca, em meio a essa realidade. “Se a comida no prato já falta em tempos de escassez, agora isso tende a aumentar. A gente sabe que a nossa população preta, pobre, carente, favelada e periférica pode morrer de coronavírus ou pode morrer de fome. É de uma questão de sobrevivência que a gente está falando”, afirma.

Para a moradora, é na solidariedade, na união e na força da população favelada que está a resistência para essa pandemia. “É hora de união entre favelas e dentro da própria favela. A gente não pode esquecer que o nosso povo precisa ter autonomia, que a autogestão nos move. Que a gente tire isso como potência pro futuro, com reciprocidade e fortalecimento desse território de bem viver que é a favela, que é o nosso quilombo.”

É hora de aquilombar.

¹ https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/30/trabalho-informal-avanca-para-413percent-da-populacao-ocupada-e-atinge-nivel-recorde-diz-ibge.ghtml

² Fonte: Dados tabulados por Thiago Brandão Peres; Microdados. PNAD. IBGE. Brasil

--

--

Instituto Pacs
Instituto Pacs

Written by Instituto Pacs

Instituto Pacs é uma organização sem fins lucrativos dedicada a promoção do Desenvolvimento Solidário. http://pacs.org.br/

No responses yet