A militarização de cá para lá da América
Por Miguel Borba de Sá e Thiago Mendes/ Instituto Pacs
O historiador e sociólogo conservador Oliveira Viana, conhecido por subestimar a presença negra na formação social brasileira, justifica da seguinte forma, no livro “Problemas de política objetiva”, de 1930, a invasão estadunidense no Haiti, em 1915:
“Os americanos entram ali e põem para fora do governo, sumária e drasticamente, os politiqueiros que exploravam, sob o rótulo de democracia, o país. Feito o que, começam a refundir, a reformar, a reorganizar tudo — isto é, a governar.
Restauram, com providências práticas e enérgicas, as finanças públicas. Reformam o absurdo sistema de impostos, substituindo-o por outro racional e justo. Dão aos dinheiros arrecadados uma aplicação rigorosamente honesta: gastando-os em serviços públicos. Enchem o Haiti de escolas de todo gênero; primárias, profissionais, técnicas; — e com isto reduziram o coeficiente de analfabetismo, que era, no ‘Haiti soberano’, de 95% […]”
O texto de Viana mostra como são antigas as intervenções militares no Haiti e como pouco mudaram os argumentos para tentar justificá-las. O País foi o primeiro a conquistar sua independência na América Latina, em 1804, a partir de uma revolução popular. Desde então, porém, o País tem sofrido inúmeros golpes militares, seguidos de ditaduras.
O mais recente desses golpes aconteceu em fevereiro de 2004. Naquele ano, parte da elite haitiana, aliada a França, Estados Unidos e Canadá, sequestrou a soberania do país caribenho ao destituir o presidente Jean Bertrand Aristide, democraticamente eleito duas vezes, mas considerado como um entrave ao avanço do neoliberalismo no Haiti. Iniciava-se assim uma intervenção militar e política internacional destinada a garantir essa mudança de regime: a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah).
Comandada pelo Brasil, a missão foi criada sob o falso pretexto de reduzir a violência do Haiti e conter uma suposta ameaça ao entorno regional vinda de um lugar com índices de violência menores do que cidades como Baltimore, nos Estados Unidos, por exemplo, ou Rio de Janeiro e Recife, no Brasil. Mesmo assim, a invasão estrangeira não foi capaz de diminuir os reais índices de criminalidade, que aumentaram desde então. Ela própria, a Minustah, foi acusada de centenas de casos de assédio e abuso sexual, roubos de propriedades (como cabritos), truculência e discriminação racial em suas abordagens sobre civis haitianos sem que ninguém fosse preso.
Mais de 10 mil pessoas morreram pela introdução da bactéria do cólera pelas tropas estrangeiras, sem que houvesse o reconhecimento oficial por parte das Nações Unidas da responsabilidade pela intromissão da epidemia.
A Minustah foi encerrada oficialmente em outubro deste ano, e se durou tanto tempo não foi por seus êxitos, mas por ter sido capaz de prolongar seus fracassos e permitir a continuidade de quem se beneficia com a ocupação. As forças armadas brasileiras ganharam novos equipamentos, muitos oficiais ficaram anos recebendo salários em dólares e criou-se por lá uma grande indústria internacional do humanitarismo — nos setores militar, filantrópico, diplomático, religioso e acadêmico — para quem faz carreira passando pelo Haiti. São mais de 10 mil ONGs operando no país.
Por trás do discurso fácil do assistencialismo e das fotos de soldados sorrindo para a população, ocultam-se o interesse das grandes empresas que exploram a mão de obra, os recursos naturais, a flexibilidade das legislações ambiental e trabalhista. Foi para atender a esses interesses que a Minustah se manteve em atividade por 13 anos. Não é coincidência que ela acabe em 2017, quase no mesmo período de falência do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), no Rio de Janeiro. Elas são parte de uma mesma política de controle sociorracial sob roupagem discursiva humanitária.
Infelizmente, a retirada das tropas não significa o fim da ocupação econômica e militar no Haiti. Essa outra forma pode vir a ser pior do que a própria Minustah. A crise política é iminente num momento pós-ocupação. Basta que pensemos nas zonas francas, no alto desemprego, na expulsão de camponeses e camponesas pelo agronegócio, na mineração, no turismo de luxo que cresce em meio a um país ainda não reconstruído após o terremoto de 2010. Há um barril de pólvora prestes a explodir. E esse pavio foi aceso para atender a grandes interesses econômicos transnacionais.
“Ora, os americanos compreenderam logicamente (lógica pragmática…) o que se fazia preciso era corrigir esta inacessibilidade, quebrar esta impenetrabilidade, em suma ‘ventilar’ a região” — continua o texto de Oliveira Viana sobre o Haiti de 1915.
O texto de Viana e os atuais discursos que justificam o abandono do princípio da soberania dos povos em nome da “paz”, da “humanidade” ou do “desenvolvimento”, ao passo que convive bem com a continuidade das opressões, com a adesão a um discurso militarista como solução para problemas inventados e com o colonialismo secular unido ao racismo ora mais ora menos disfarçado — constituintes das relações entre os centros capitalistas dominantes e as periferias do capitalismo global — são faces de uma mesma pirâmide que tem submetido os povos do nosso continente a ocupações sangrentas — e lucrativas — há pelo menos cinco séculos.