A Fortaleza das Mulheres
É como eu sempre digo: a polícia acabou com os meus sonhos. Eu tinha o sonho de os meus filhos estudarem pra eles seguirem a carreira militar. Quando eram pequenininhos, eu coloquei uma roupa de policial neles, bati foto e tudo. O quadro está lá em casa até hoje, tirei o pó dele esses dias e acho que nem vou pendurar mais. Nem eu quero que sejam nem eles querem ser mais militares. Não quero meus filhos recebendo treinamento que embrutece.
Todos os dias a polícia entra lá na comunidade. Chega vasculhando as casas, revistando quem estiver pela frente. De uns tempos para cá eles vêm numas motos que parece que vem entrando os cavalos do cão. Se o cachorro latir, eles atiram no cachorro. Isso acontece em todas as comunidades. Eu digo porque um dia eu estava numa roda de conversa na universidade sobre violência policial e tinha uns meninos de várias comunidade que estavam na Liberdade Assistida e todo mundo falou como a polícia atua nas suas áreas. Era melhor não dizer de onde éramos para não ter problema entre os meninos, mas as histórias se repetiam.
O Dr. Cristian[1], o juiz, estava lá também e eu perguntei para ele: quando o menino é pego na comunidade, se não tiver dinheiro, eles apanham e a polícia ainda forja um flagrante dizendo que encontrou droga com o menino. Levam para a delegacia — quando levam, porque às vezes só querem o dinheiro — e quando chegam no IML que fazem o exame de corpo de delito, quem fica com o laudo? Quem tem acesso a esse laudo? Eu perguntei porque meu filho já teve cinco quedas e eu já o vi muito machucado, mas nunca tive acesso a um laudo. Ele não respondeu, colocou outra história por cima. E a gente segue sem ter acesso aos documentos que eles mesmos produzem e que deveriam resguardar nossos direitos.
A gente pede só que se cumpra a lei. Não já pegou o menino? Pois leve pra Delegacia. Outro dia a menina chegou correndo lá em casa porque tinham prendido meu filho de novo. Corri lá e os policiais me mostraram um saquinho com uns pacotinhos, dizendo eles que era do meu filho. Eu disse: pois levem para a Delegacia. Soltaram na mesma hora, mas meu filho ainda arranjou uma parte do dinheiro que eles estavam pedindo. No caso do meu filho queriam dinheiro. No caso de outros filhos queriam a dignidade: batem e vão embora. Voltam no outro dia, todos os dias, e o medo retorna com eles.
Quem mora em comunidade tem medo, todo dia. Todo dia. Quando eles chegam, os adolescentes já correm porque sabem que quem ficar vai apanhar. Se escondem até em um bueiro que tem lá. Se eles pegam alguém, o menino já joga o celular longe porque sabe que quem fica perde o celular. Já invadiram a minha casa, espancaram esse meu filho e outro menino, levaram um cordão e o salário do meu marido, fizeram as meninas tirarem toda a roupa acusando de que tinham droga. Para reaver os objetos não sabemos a quem procurar porque eles não levam as coisas para a delegacia. Meu menino mais novo tem 12 anos e foi jogar fliperama lá perto quando a polícia chegou fazendo uma abordagem. Ele me disse que não sabia nem como era o jeito de colocar as mãos na cabeça.
Eles já tiraram foto de vários meninos e enviaram para os rivais deles para perguntar quanto valia suas vidas. Caso o menino não desse um jeito de cobrir o “lance” dos inimigos, eles levariam para o lado inimigo e deixariam lá. E deixaram mesmo. Fizeram mesmo isso. O menino conseguiu escapar e apareceu de volta todo arrebentado, ensanguentado.
Quando eles pegam alguém, a gente corre, chama a mãe do menino e fica olhando a ação deles. Se a Margarida está lá, eu já corro para perto. Se eu estou lá, ela vai também. E as outras vão chegando. É arriscado. Eles acham ruim, mandam a gente voltar para casa, chamam a gente de vagabunda, ameaçam, bateram na mãe do Vanderlei quando ela foi pedir para que parassem de bater no filho dela. Mas mesmo assim a gente vai e fica olhando: vão fazer o que contra a gente? Eu não estou lá desacatando ninguém. Fico de pé, olhando, fico perto.
Nem adianta querer filmar porque eles tomam nosso celular. A gente tenta filmar para ter uma prova das violências que eles realizam, mas nos proíbem enquanto são os primeiros a chamar os programas policialescos para filmarem os meninos. Eu não assisto, mas minhas vizinhas sempre avisam quando nossos meninos passam nesses programas bem na hora que está todo mundo almoçando de frente para a televisão. Nessas reportagens, os adolescentes são sempre culpados e a polícia sempre atua perfeitamente. Além dos programas, ainda tem as fotos que os próprios policiais tiram e colocam no Facebook, mandam pelo Whatsapp.
Lá na comunidade tem uma casa abandonada que é usada só para isso. Um sábado de manhã levaram o filho da Margarida para essa casa. Ela se aproximou, disse que era a mãe dele, que era acompanhada pela ONG que é parceira nossa e que ia chamar a reportagem se eles não parassem de bater no menino. Acho que eles ficaram com medo. Devolveram o menino para ela, todo roxo e machucado. Quando eles levam o menino e demoram horas para chegar na Delegacia, a gente liga para o próprio 190 para localizar a viatura. Da última vez, a viatura apareceu depois de quase quatro horas.
Quando alguém é preso, a gente sempre se ajuda para localizar o menino, falar com a delegacia e saber informação. Quando é adolescente eu já tenho mais facilidade porque sou do Grupo de Mães do Socioeducativo. Coloco minha blusa e consigo entrar com a mãe ou o pai do menino, explicar como é que as coisas funcionam. Lá dentro é outra batalha enorme para que eles não saiam descrentes de que existe outro caminho depois de sofrer tanta violência da polícia, da mídia e das facções. Lá dentro a preocupação deles é manter os meninos sob controle, seja qual for o custo. Parece que esquecem que esse menino tem uma vida antes e que tem gente lutando para que ele sobreviva ao sistema e tenha uma vida digna aqui fora.
A gente vai dando o jeito que pode, enfrentando todo dia o medo e a humilhação, cuidando umas dos filhos das outras. É difícil ter sangue frio para não explodir com tanta injustiça. A gente vai se ajudando, uma apoiando a outra. É uma luta cotidiana contra coisas que a gente tem medo até de falar em voz alta. Esse texto aqui é uma das primeiras vezes que a gente fala sobre isso fora da nossa comunidade. Não sabemos nomes — eles retiram a identificação do colete e entram de bala clava. E mesmo assim parece que os nomes não fazem muita diferença: os policiais militares não ficam muito tempo no mesmo lugar, mas os que chegam continuam a crueldade dos que se foram.
Crueldade que ameaça castigar e capturar nossos filhos a qualquer momento, que nos ameaça se nos levantamos contra alguma dessas tantas injustiças. Nem o direito de fazer festa nós temos. Outro dia a polícia chegou jogando bomba de gás lacrimogêneo no São João, foi até notícia. Mas nem saiu no jornal a notícia do baile que os jovens fizeram e acabou com a polícia batendo com cano de pvc em duas fileiras de meninos e meninas.
Eu estou até pensando em me juntar com os meus vizinhos e colocar um portão na entrada da comunidade. Quem sabe assim eles não acham mais parecido com condomínio e nos deixam em paz? Não sei se vai funcionar mas a gente tenta ser proteção para o nosso povo o mais que podemos. Nossa cidade tem esse nome por causa de um forte militar, mas nós fazemos um novo sentido para ela. Fazemos uma fortaleza de mulheres cujo principal armamento é o amor por nós e pelos nossos.
[1] Todos os nomes próprios são fictícios.
Por Mariana, participante do grupo Mães e Familiares do Socioeducativo do Ceará